« ORAÇÃO DO ABANDONO»
(Carlos de Foucauld)

«Meu Pai, a vós me abandono: fazei de mim o que quiserdes! O que de mim fizerdes, eu vos agradeço. Estou pronto para tudo, aceito tudo, contanto que a vossa vontade se faça em mim e em todas as vossas criaturas. Não quero outra coisa, meu Deus.
Entrego a minha vida em vossas mãos, eu vo-la dou, meu Deus, com todo o amor do meu coração, porque eu vos amo. É para mim uma necessidade de amor dar-me, entregar-me em vossas mãos sem medida, com infinita confiança, porque sois meu Pai.»

«Lâmpada para os meus pés e luz para o meu caminho» Salmos 115:105

«Lâmpada para os meus pés e luz para o meu caminho» Salmos 115:105

domingo, 5 de dezembro de 2010



Avé Maria, tão pura
Virgem nunca maculada
ouvi a prece tirada
no meu peito da amargura.

Vós que sois cheia de graça
escutai minha oração,
conduzi-me pela mão
por esta vida que passa.

O Senhor, que é vosso Filho,
que seja sempre conosco,
assim como é convosco
eternamente seu brilho.

Bendita sois vós, Maria,
entre as mulheres da Terra
e vos'alma só encerra
doce imagem d'alegria.

Mais radiante do que a luz
e bendito, oh Santa Mãe
é o Fruto que provém
do vosso ventre, Jesus!

Ditosa Santa Maria,
Vós que sois a Mãe de Deus
e que morais lá no céus,
orai por nós cada dia.

Rogai por nós, pecadores,
ao vosso Filho, Jesus,
que por nós morreu na cruz
e que sofreu tantas dores.

Rogai, agora, oh Mãe querida
e (quando quiser a sorte)
na hora da nossa morte
quando nos fugir a vida.

Ave Maria, tão pura
Virgem nunca maculada,
ouvi a prece tirada
no meu peito da amargura.

Entregue suas dores
e alegrias a Maria...
Ela as entregará a Jesus ! ...
Confia na Mãe querida !
Que Nossa Senhora abençoe
você e sua família !


Fernando Pessoa

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Despolitizar as religiões

Frei Bento Domingues, o.p.

1.As celebrações religiosas sem emoção são uma seca, mas uma religião dominada, apenas, por fluxos emocionais cai na cegueira fundamentalista. A fórmula “fé e razão” – fé viva e razão inteligente – é uma proposta saudável de mútuo estímulo e de vigilância recíproca. Tornou-se, no entanto, recorrente falar da troca das grandes Igrejas clássicas, católicas ou protestantes, formalistas, doutrinais e dogmáticas, pelas Igrejas pentecostais e novos movimentos religiosos com narrativas de doenças e respectivas curas milagrosas, sublinhadas com música estridente.

Serão, todavia, respostas adequadas aquelas que copiam as práticas das Igrejas protestantes americanas, como fez, por exemplo, o católico filipino, Mariano Velarde, lançando, a sul de Manila, o movimento chamado “El Shaddai”? Fundado em 1980, reúne mais de oito milhões de fiéis. É o maior e mais discutido movimento religioso do arquipélago e já construiu um dos maiores templos de toda a Ásia. Não me parece que seja esse um grande exemplo de imaginação criadora perante os desafios que as mudanças culturais e religiosas pedem aos movimentos católicos, seja em que país for. Depois da euforia da moda, virá a depressão.

2. A Europa emancipada da influência cristã teme, agora, o “regresso da religião” confundido com as ameaças do fundamentalismo islâmico. Esquece a complexidade do fenómeno religioso. As religiões, como diz o historiador F. Diez de Velasco, são sistemas culturais e simbólicos que oferecem explicações do mundo que potenciam a estabilidade, mas também podem veicular forças de desarticulação. Apostam na paz, mas também utilizam a violência, sustentam a concórdia e a revolta. Aliás, as religiões não são apenas diversas, são também multifuncionais e manifestam-se na multiplicidade de experiências e de âmbitos, desde o individual e familiar – onde o culto é dirigido pelo pai ou pela mãe – até ao universal, passando pelo étnico, o imperial e o nacional (1).

Este panorama não diz a razão desses contrastes. Muitos dos que desejariam ver o fim das religiões julgam-nas, apenas, factores de violência que querem substituir por uma teoria universal da civilização. Peter Sloterdijk termina o seu livro sobre a “Loucura de Deus”, isto é, sobre o combate dos três monoteísmos, com uma nova confissão: “Repito-o como um credo e desejo que tenha suficiente energia para se propagar mediante línguas de fogo: o caminho da civilização é o único que ainda está em aberto”.

Inspirou-se num grande egiptólogo, Jan Assmann, mas não adoptou a sua subtileza que não confunde o monoteísmo com a violência. Para este, a questão real não consiste em universalizar a aliança entre religião e violência, mas antes tentar impedi-la e ultrapassá-la: “a meus olhos, o debate contemporâneo sobre as questões da religião e da violência sofre de uma falta de precisão que prejudica estes conceitos. O que procurei fazer neste ensaio foi delimitar e isolar o fenómeno da violência religiosa: em primeiro lugar, distinguindo-o de outras formas de violência e, depois, historicisando-o, isto é, reconduzindo-o ao seu contexto histórico de origem. O que me interessa é desactivar, de certa maneira, alguns textos que, nas mãos de fundamentalistas, podem, a qualquer momento, fazer explodir barris de pólvora. Em vez de a tornar serva da política, a religião ganharia em se entender como um contra-poder face à política. A sua força não deveria estar na violência, mas no abandono consequente da violência. Vejo o impulso original do monoteísmo bíblico na sua capacidade de traçar uma fronteira entre a dominação e a salvação, entre o poder político e o poder divino e em despojar os chefes mundanos da salvação e os chefes religiosos da violência. É este impulso, seguramente inscrito no cristianismo – sobre este ponto estou de acordo com René Girard – que nunca foi realizado e que é preciso activar, hoje, de forma consequente” (2).

Segundo este historiador, a violência religiosa não está inscrita na sua natureza e é, em última instância, uma contradição nos termos. A violência pertence ao campo da política, não ao da religião. Uma religião que se apodera da violência fica concentrada no domínio da política – impensável sem violência – e falha a sua verdadeira função neste mundo, cuja força deve ser a não-violência. É preciso despolitizar radicalmente as religiões monoteístas para libertar os seres humanos da omnipotência do cosmos, do Estado, da sociedade ou de qualquer outro sistema com pretensões totalitárias.

3. A força da religião deve ser, sem dúvida, a da não-violência. Para aí chegar, é preciso uma longa peregrinação. Essa é a do diálogo inter-religioso. Anselmo Borges acaba de publicar, sobre esta problemática, um livrinho que é, verdadeiramente, uma obra-prima (3). Se me irrita o prazer que alguns jornalistas manifestam em situar Portugal na cauda da Europa, não escondo que também me irrita a ignorância que observo, entre nós, na abordagem do fenómeno religioso. Já não há desculpa. Gostaria que este livro de bolso fosse a companhia de todos os que desejam saber do que falam, quando falam de religião.

(1) Francisco Diez de Velasco, Breve historia de las religiones, Madrid, Alianza Editorial, 2008, p. 17

(2) Jan Assmann, Violence et monothéisme, Paris, Bayard, 2009, pp. 9-10.

(3) Religião e Diálogo Inter-Religioso, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Afluentes do mar de Deus

5 de Agosto. Quinta-feira. Sol a pique. Vinha da feira, arrependida por lá ter ido. Filas de carros, calor abrasador, confusão de gente e de línguas…
- Qu’est-ce? Não mexas aí, eu não te disse para não trazer o miúdo?
- Três oiros.
- Oh c’est trop cher! Num sei se tá pior aqui ou lá…
Dei comigo com vontade de gritar «a minha pátria é a língua portuguesa» eternizando o autor da frase, Fernando Pessoa. Não o fiz e ala que se faz tarde, com zigues e zagues rumei para casa.
Quando me aproximava do prédio onde vivo, na Quinta Nova antes de S. João de Deus, vejo um grupo de homens, destacando-se um com batina e um outro à cabeça do grupo com o crucifixo levantado, quase rumo ao céu, imponente… Segui-lhes os passos com Jesus Cristo na cruz a indicar caminhos. Mesmo em frente ao meu prédio, pararam debaixo de uma árvore, formaram um círculo e no centro ficou o padre e o jovem que elevava o crucifixo. Abeirei-me timidamente para não importunar. E rezaram… Rezaram o Pai Nosso e Glória em espanhol. Rezei com eles em português, porque entretanto fizeram-me um gesto para me aproximar. Fizeram uns minutos de silêncio com os olhos postos no Guia, o Guia de todos os caminhos, destes da terra e dos outros, os insondáveis, transcendentais, mais difíceis porque não são calcorreados com os pés.
Quando partiam, perguntei-lhes de onde vinham. Partiram de Lisboa, foram a Fátima e iam para Santiago de Compostela.
Eu ia para casa. Com um sorriso nos lábios. E com Jesus elevado na janela do meu olhar.
Interiormente repetia em português, em francês, em galego, em inglês, em italiano «Que lindo!», «Que c’est beau!», «Que hermoso!», «How beautiful!», «Che bello!». Concluí que «a minha pátria é a língua portuguesa» e o meu lar é um dos caminhos porque todos os caminhos vão desaguar em Deus.

Virgínia Rafael

terça-feira, 20 de julho de 2010

Crónica de Frei Bento Domingues







Cristãos de aviário?


Frei Bento Domingues, o.p.



1.Apresentaram-me, há dias, um católico fervoroso de uma maneira curiosa: “este não é um cristão de aviário; foi ele que pediu, aos 35 anos, para ser baptizado”. Não achei nada de estranho.

No começo do Cristianismo, o Baptismo nasceu para celebrar a conversão de milhares de adultos. É, ainda hoje, a prática corrente em muitos países. Mesmo na velha Europa, incluindo Portugal, por motivos e caminhos muito diversos, o Baptismo já não é só pedido para crianças.

Em caso nenhum, porém, se pode falar de cristãos de aviário. Tertuliano (155-222), um tunisino convertido, o primeiro grande intelectual cristão, cunhou uma fórmula exemplar: “ninguém nasce cristão, torna-se cristão”. Mesmo aqueles que recebem o Baptismo em criança celebram o começo de uma caminhada, não o de uma fatalidade.

O termo português baptismo é a transliteração do grego baptismō e significa banho, associado aos verbos: mergulhar, lavar, derramar. A partir dessa realidade empírica e simbólica assumiu, no plano religioso, o sentido de purificação e de nova vida.

A grande dificuldade, no próprio imaginário de muitas iniciações ao Baptismo cristão, consiste em tomar como seu antecedente directo o Baptismo que João ministrou a Jesus no rio Jordão.

É verdade que Jesus de Nazaré levou, como homem, muito tempo a encontrar o seu próprio caminho e a sua missão. Foi discípulo de João Baptista, de quem nunca disse mal, antes o elogiou como a ninguém, mas desligou-se dele e escolheu outro género de vida. O que marcou a originalidade de Jesus não foi o Baptismo de João. Qual terá sido, então, a experiência que o fez romper com esse grande profeta?

S. Lucas – assim como os outros evangelistas – contam o que se passou: tendo Jesus sido baptizado, e estando em oração, o Céu rasgou-se; o Espírito Santo desceu sobre Ele em forma corpórea, como uma pomba. Do Céu veio uma voz: «Tu és o meu Filho muito amado; em ti me comprazo» (Lc 3, 21-22).

Foi esta experiência mística, foi este banho de Espírito Santo, que alterou o rumo da sua vida. É a partir daqui que se pode falar de antes e depois de Cristo. Lucas vai dizê-lo, de forma explícita: A Lei e os profetas até João. Daí em diante, é anunciada a Boa Nova do Reino de Deus. O IV Evangelho ainda é mais incisivo: A Lei foi dada por meio de Moisés; a graça e a verdade nos vieram por Jesus Cristo (Jo 1, 15-34).

2. As Igrejas de Jesus Cristo ressuscitado são fruto do Pentecostes. Pelo menos, é assim que são apresentadas, de muitas maneiras, pelos Actos dos Apóstolos. Os primeiros convertidos perguntaram a Pedro e aos apóstolos: Irmãos, que devemos fazer? A resposta já resume, sem dúvida, práticas simbólicas das comunidades cristãs: Convertei-vos e seja cada um de vós baptizado em nome de Jesus Cristo, para a remissão dos pecados e recebereis, então, o dom do Espírito Santo (Act 2, 37-38). Um ritual é um programa de acção simbólica. Deus, porém, não está dependente dos rituais. Estes não são a única forma da sua actuação, não têm o exclusivo da sua graça. Nos capítulos 10 e 11, conta-se que, sem ritual nenhum, enquanto Pedro falava, o Espírito Santo – sem lhe pedir licença – caiu sobre todos os que ouviam a palavra e concluiu com muito bom senso: Pode-se porventura, recusar a água do Baptismo a esses que, como nós, receberam o Espírito Santo? Este desembaraço, em Cesareia, criou-lhe muitos problemas, em Jerusalém, onde foi obrigado a justificar-se perante judeus circuncisos, que não admitiam que o Espírito de Deus andasse à solta entre os pagãos. Convém não esquecer que antes, durante e depois da acção ritual é em Deus que vivemos, nos movemos e existimos. As acções simbólicas não existem para provocar a acção de Deus, mas para nos abrirmos à sua intervenção. Para justificar os sacramentos, temos a tendência em restringir a acção de Deus, anexando-a aos rituais, esquecendo que somos nós, seres simbólicos por natureza, que precisamos dessas mediações, que não podem encurtar a divina liberdade.

3. Consta de uma homilia de S. Gregório, bispo de Nisa (século IV), a seguinte oração baptismal: “Eu te marco em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, para que sejas cristão: os olhos, para que vejas a luz de Deus; os ouvidos, para que ouças a voz do Senhor; o nariz, para que percebas o suave odor de Cristo; os lábios, para que, uma vez convertido, confesses o Pai, o Filho e o Espírito Santo; o coração, para que creias na Trindade indissolúvel. O Verbo santificou-nos, o Espírito marcou-nos; o homem novo saiu ao mundo encontrando de novo a sua juventude pela graça”.

Que não pode haver “cristãos de aviário” é o próprio ritual do baptismo da criança que o diz. Os pais e padrinhos comprometem-se a realizar um programa de educação, em liberdade, num mundo em transformação. Se proclamam que não vale tudo, é preciso não se deixar enganar pelas seduções do mal sempre com novos rostos. Sem a descoberta permanente de Cristo, como fonte de sentido, de beleza, de responsabilidade e sem a força da sua graça é impossível ser fiel a esse programa numa vida em devir.





sábado, 19 de junho de 2010


"Na oração, quando a linguagem humana tem dificuldades em expressar o que vai nas profundezas de nós mesmos, não nos inquietemos. Numa oração, feita apenas de silêncio, descansamos em Deus, de corpo, de alma e de espírito.

Quando estamos a rezar, que fazer com as distracções? Não nos preocupemos com elas. Deus conhece o nosso anseio. E, melhor do que nós, Ele percebe a intenção e o íntimo do nosso ser."

Na oração, deparamos muitas vezes com reflexões e imagens a entrecruzarem-se no nosso espírito. Quando damos connosco a dizer: «Extraviam-se-me os pensamentos, o meu coração está dividido», o Evangelho responde-nos: «Deus é maior do que o nosso coração».

quinta-feira, 17 de junho de 2010








José Luís Peixoto - 1974
Deus, anda cá








Afinal, não era preciso chamá-lo. Já cá estava. Eles dizem que Deus vê tudo o que fazemos. Vê o obsceno, vê o repugnante, vê o miserável. Deus vê o invisível. Se existir céu e inferno, fico contente por ti, mas, por mim, sinto um certo receio. Repara, eles não dizem que Deus vê algumas das coisas que fazemos, não dizem que Deus vê apenas aquilo que é mais interessante ou susceptível de ser considerado na equação céu/inferno. Não, eles dizem que Deus vê tudo o que fazemos: tudo. Quando dormimos, Deus olha pacientemente para nós. Já olhei para ti enquanto dormias. Compreende que Deus não se canse de fazê-lo. Também quando esperamos, Deus assiste à nossa espera. Também quando lavamos o carro numa estação de serviço. Também quando passeamos num jardim ao domingo. Ainda assim quero pedir-te que não imagines Deus como um velho reformado, sem vida própria, submerso em memórias, sozinho, sentado num cadeirão gasto, a ver televisão numa sala com os estores corridos. Nada é assim tão simples. Nem mesmo esse velho reformado é assim tão simples. Deus não vê apenas, Deus sabe. Ao contrário de mim, Deus não se detém perante o teu rosto, tentando perceber se queres ou não queres, se gostaste ou não gostaste, tentando perceber o que significa aquilo que dizes e aquilo que insistes em calar. Deus sabe a distância precisa entre a ponta do teu nariz e o z desta palavra: nariz. Sabendo tudo, Deus sabe muita informação desnecessária. Sabe tudo o que sabemos e tudo o que não sabemos. Quando estamos errados, Deus sabe detectar o erro, sabe corrigi-lo e sabe todas as possibilidades de resolução do problema, sem erro, com erro e com todos os erros possíveis. Deus é mais exacto do que a Matemática. Melhor do que nós, Deus consegue entender a razão de cada gesto porque conhece todos os pormenores da sua história e relaciona-os através da verdade. Deus consegue ver o passado com a mesma nitidez absoluta com que olha o presente. Nas grandes multidões, nos apertos antes da entrada nos estádios, nos concertos, eles dizem que Deus está lá a seguir cada pessoa e, para atenção de Deus, cada um desses indivíduos é um mundo inteiro e completo. Eles dizem que Deus só pensa em nós. Passa todo o tempo a ver-nos por dentro e por fora. Testemunha cada episódio da luta que travamos com os nossos instintos, com os nossos impulsos e com os impulsos que surgem no nosso caminho. O nosso caminho não é uma estrada. Não sabemos o que é. Às vezes, parece que Deus nos colocou aqui como ratinhos num labirinto e, enquanto tira notas, espera que um dia encontremos a saída. Nascemos um dia. Chegámos de onde não sabíamos nada e, consoante o que encontrámos, fomos aprendendo. Eles dizem que Deus assistiu a todos esses momentos. A sua mente não divagou, não se desinteressou. Eles dizem que Deus nos vê desde o início, desde quando não sabíamos nenhuma palavra. Eu também te vi quando ainda não sabias nenhuma palavra. Eles dizem que Deus nos viu nascer. Eu também te vi nascer. Essa é uma das experiências que partilhei com Deus. Sabes, apesar de estarem quase a passar doze anos sobre esse momento, também eu o consigo ver ainda com nitidez absoluta. Acredito que nunca se apagará de mim. Ao contrário de Deus, eu sempre andei longe, o meu olhar foi espaçado, mas acredita, filho, nunca te esqueci, nunca deixaste de ser parte de mim. Não foi por querer que não pousei o cobertor sobre o teu corpo antes de dormires. Não foi por querer que não brinquei contigo assim que acordaste. Demorará até que entendas, mas esperarei o tempo que for necessário. Se Deus é pai como eles dizem, então deixa-me contar-te um pouco do amor que Deus tem por ti: Deus acredita que o amor que sente por ti é maior que ele próprio, Deus acredita que os lugares onde está não são todos porque tem a certeza de que o amor que sente por ti é maior do que todos esses lugares, Deus acredita que não sabe tudo porque o amor que sente por ti é maior do que tudo. Sendo teu pai, Deus também é teu filho, filho.

sábado, 12 de junho de 2010

Crónica de Frei Bento Domingues















Fabrice Hadjadj



O demónio não é ateu

Frei Bento Domingues, o.p.

1.Já tinha sido atribuído a Fabrice Hadjadj, em 2005, o Grand Prix Catholique da literatura pelo ensaio sobre a morte como anti-método para viver (1). Este ano, as livrarias religiosas de França atribuíram-lhe um novo prémio por uma obra, muito original, sobre a fé e as astúcias dos demónios (2).

Mas quem é, afinal, Fabrice Hadjadj ignorado das nossas livrarias e editoras religiosas? É um judeu francês, de nome árabe e católico fervoroso. Nasceu em 1971, converteu-se aos 23 anos e foi baptizado na Abadia beneditina de Solesmes, aos 26 anos. É casado, pai de cinco filhas, dramaturgo, ensaísta, professor de literatura e de filosofia.

Não gosta de falar da sua conversão – é um processo permanente –, mas não esconde o seu começo paradoxal: “Foi através de Maria que encontrei Cristo, não como uma ideia, mas como uma pessoa bem viva. Tinha-me estado a rir, na igreja de Saint-Séverin – a culpa é de Voltaire! – dos ex-votos que rodeavam uma imagem de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro: sucesso nos exames; obrigado pela carta de condução, etc. Uma semana depois, meu pai ficou gravemente doente. Estávamos todos aflitos. Corri, então, para Saint-Séverin e rezei a essa Virgem de quem me tinha rido na véspera. Entrou em mim uma estranha paz. Nada de espectacular. Pelo contrário, sentia-me no meu lugar: uma criança que confessa a sua fraqueza e que reza pelos seus pais, algo bem mais radical do que matar o pai. A essência do ser humano é isto mesmo: a posição vertical ferida”.

Observaram-lhe, numa entrevista, que nada fazia prever este desenlace: “Tu nasceste numa família de confissão judaica e vens de um meio marxista. – Também eras anti-cristão?” Eis a resposta: “Como judeu, como esquerdista, como discípulo de Nietzsche, eu era tripla, feroz e violentamente anti-cristão. A palavra Deus provocava-me urticária. Era um tapa-buracos, uma maneira de alguém se esquivar aos problemas. Hoje, para mim, é uma palavra que abre o abismo, um modo de mergulhar no mistério. Esta conversão foi também uma conversão do meu vocabulário: as mesmas palavras que me pareciam antes mentirosas ou vazias, de repente, tornavam-se cheias de sentido. Um pouco como quando as escamas caíram dos olhos de Saulo”.

Não quer entrar em pormenores. Receia cair no romanesco e de dar a impressão que a conversão é um coroamento, quando, de facto, é um ponto de partida. Deus converte-nos todos os dias com a criação inteira. Tudo, a luz do dia, o perfume das rosas, o rosto das pessoas, mas também os dramas da existência, muito especialmente a Cruz, tudo existe para nos voltar cada vez mais para Ele. “Sim, é verdade que, num dia de Páscoa, aos 26 anos, fui baptizado na Abadia de Solesmes”.

2. O que esta conversão mudou na vida de Fabrice Hadjadj? “Não mudou nada na minha vida e, simultaneamente, mudou tudo. Continuo a ser eu próprio, com o coração à esquerda e uma forte miopia... Sempre quis ser escritor, mas só depois aconteceu, como se todas as coisas me aparecessem sob uma outra luz e com outra profundidade. O que, para alguns, poderá parecer paradoxal é que, a partir desta luz, reencontrei uma confiança especial na razão e na carne (3). Antes, estava perto de abandonar a filosofia e não queria ter filhos. Agora, acredito no trabalho da razão e esperamos, com a minha mulher, a nossa quinta filha. Acreditar no Criador não é fugir, mas reencontrar a criação inteira na sua fonte, no seu brotar. O caminho do céu é a terra”.

A conversão é uma graça: “O que me leva a escrever não é o zelo do convertido, mas sobretudo a alegria da inteligência e da poesia quando se aproximam do mistério e, mais precisamente, do mistério da Incarnação”.

3. Numa época em que se diz que o diabo não existe, como se atreve a consagrar-lhe uma obra? “Não consagro nada ao diabo. Acolho o Eterno que tem a vantagem de ser sempre mais antigo e sempre mais novo. Se falo dos demónios, sigo a iniciativa dos Evangelhos que não estão interessados em dizer que o diabo existe. Procuram fazer abortar as suas tentações e astúcias que se apresentam sempre sob a figura do bem. Não basta a fé. Uma certa fé também os diabos a têm. A Carta de São Tiago adverte-nos: Crês que há um só Deus? Óptimo. Os demónios também crêem e tremem. Jesus, ao entrar na sinagoga de Cafarnaum, depara com uma profissão de fé do demónio: Sei quem tu és, o Santo de Deus (Mc 1, 24). Jesus recusa as tentações diabólicas de um messianismo espectacular, baseado no êxito económico, político e religioso”. Esta recusa ficará, para sempre, como uma lição de vida para cada cristão e para a Igreja. É na fraqueza que se manifesta a força da graça divina. O diabo acredita num Deus de poder, não suporta a incarnação de um Deus de misericórdia.

Quando Fabrice Hadjadj descobriu a “fé dos demónios”, concluiu que, apesar de tudo, “o ateísmo e a libertinagem não eram o pior dos males. O demónio não é ateu nem carnal. Uma fé demoníaca é uma fé desincarnada, abstracta, sem amor nem compaixão. Em nome de caridades imaginárias, esquecemo-nos de amar o próximo que está à nossa porta ou, até, na nossa própria cama”… A fé verdadeira é o acolhimento humilde de Deus na nossa finitude e dos outros como dons da sua graça.

(1) Réussir sa mort. Anti-méthode pour vivre, Press de la Renaissance, Paris, 2005.

(2) La foi des démons ou l’athéisme dépassé, Salvator, Paris, 2009.

(3) La profondeur des sexes: Pour une mystique de la chair, Seuil, Paris, 2008.