« ORAÇÃO DO ABANDONO»
(Carlos de Foucauld)

«Meu Pai, a vós me abandono: fazei de mim o que quiserdes! O que de mim fizerdes, eu vos agradeço. Estou pronto para tudo, aceito tudo, contanto que a vossa vontade se faça em mim e em todas as vossas criaturas. Não quero outra coisa, meu Deus.
Entrego a minha vida em vossas mãos, eu vo-la dou, meu Deus, com todo o amor do meu coração, porque eu vos amo. É para mim uma necessidade de amor dar-me, entregar-me em vossas mãos sem medida, com infinita confiança, porque sois meu Pai.»

«Lâmpada para os meus pés e luz para o meu caminho» Salmos 115:105

«Lâmpada para os meus pés e luz para o meu caminho» Salmos 115:105

sábado, 19 de junho de 2010


"Na oração, quando a linguagem humana tem dificuldades em expressar o que vai nas profundezas de nós mesmos, não nos inquietemos. Numa oração, feita apenas de silêncio, descansamos em Deus, de corpo, de alma e de espírito.

Quando estamos a rezar, que fazer com as distracções? Não nos preocupemos com elas. Deus conhece o nosso anseio. E, melhor do que nós, Ele percebe a intenção e o íntimo do nosso ser."

Na oração, deparamos muitas vezes com reflexões e imagens a entrecruzarem-se no nosso espírito. Quando damos connosco a dizer: «Extraviam-se-me os pensamentos, o meu coração está dividido», o Evangelho responde-nos: «Deus é maior do que o nosso coração».

quinta-feira, 17 de junho de 2010








José Luís Peixoto - 1974
Deus, anda cá








Afinal, não era preciso chamá-lo. Já cá estava. Eles dizem que Deus vê tudo o que fazemos. Vê o obsceno, vê o repugnante, vê o miserável. Deus vê o invisível. Se existir céu e inferno, fico contente por ti, mas, por mim, sinto um certo receio. Repara, eles não dizem que Deus vê algumas das coisas que fazemos, não dizem que Deus vê apenas aquilo que é mais interessante ou susceptível de ser considerado na equação céu/inferno. Não, eles dizem que Deus vê tudo o que fazemos: tudo. Quando dormimos, Deus olha pacientemente para nós. Já olhei para ti enquanto dormias. Compreende que Deus não se canse de fazê-lo. Também quando esperamos, Deus assiste à nossa espera. Também quando lavamos o carro numa estação de serviço. Também quando passeamos num jardim ao domingo. Ainda assim quero pedir-te que não imagines Deus como um velho reformado, sem vida própria, submerso em memórias, sozinho, sentado num cadeirão gasto, a ver televisão numa sala com os estores corridos. Nada é assim tão simples. Nem mesmo esse velho reformado é assim tão simples. Deus não vê apenas, Deus sabe. Ao contrário de mim, Deus não se detém perante o teu rosto, tentando perceber se queres ou não queres, se gostaste ou não gostaste, tentando perceber o que significa aquilo que dizes e aquilo que insistes em calar. Deus sabe a distância precisa entre a ponta do teu nariz e o z desta palavra: nariz. Sabendo tudo, Deus sabe muita informação desnecessária. Sabe tudo o que sabemos e tudo o que não sabemos. Quando estamos errados, Deus sabe detectar o erro, sabe corrigi-lo e sabe todas as possibilidades de resolução do problema, sem erro, com erro e com todos os erros possíveis. Deus é mais exacto do que a Matemática. Melhor do que nós, Deus consegue entender a razão de cada gesto porque conhece todos os pormenores da sua história e relaciona-os através da verdade. Deus consegue ver o passado com a mesma nitidez absoluta com que olha o presente. Nas grandes multidões, nos apertos antes da entrada nos estádios, nos concertos, eles dizem que Deus está lá a seguir cada pessoa e, para atenção de Deus, cada um desses indivíduos é um mundo inteiro e completo. Eles dizem que Deus só pensa em nós. Passa todo o tempo a ver-nos por dentro e por fora. Testemunha cada episódio da luta que travamos com os nossos instintos, com os nossos impulsos e com os impulsos que surgem no nosso caminho. O nosso caminho não é uma estrada. Não sabemos o que é. Às vezes, parece que Deus nos colocou aqui como ratinhos num labirinto e, enquanto tira notas, espera que um dia encontremos a saída. Nascemos um dia. Chegámos de onde não sabíamos nada e, consoante o que encontrámos, fomos aprendendo. Eles dizem que Deus assistiu a todos esses momentos. A sua mente não divagou, não se desinteressou. Eles dizem que Deus nos vê desde o início, desde quando não sabíamos nenhuma palavra. Eu também te vi quando ainda não sabias nenhuma palavra. Eles dizem que Deus nos viu nascer. Eu também te vi nascer. Essa é uma das experiências que partilhei com Deus. Sabes, apesar de estarem quase a passar doze anos sobre esse momento, também eu o consigo ver ainda com nitidez absoluta. Acredito que nunca se apagará de mim. Ao contrário de Deus, eu sempre andei longe, o meu olhar foi espaçado, mas acredita, filho, nunca te esqueci, nunca deixaste de ser parte de mim. Não foi por querer que não pousei o cobertor sobre o teu corpo antes de dormires. Não foi por querer que não brinquei contigo assim que acordaste. Demorará até que entendas, mas esperarei o tempo que for necessário. Se Deus é pai como eles dizem, então deixa-me contar-te um pouco do amor que Deus tem por ti: Deus acredita que o amor que sente por ti é maior que ele próprio, Deus acredita que os lugares onde está não são todos porque tem a certeza de que o amor que sente por ti é maior do que todos esses lugares, Deus acredita que não sabe tudo porque o amor que sente por ti é maior do que tudo. Sendo teu pai, Deus também é teu filho, filho.

sábado, 12 de junho de 2010

Crónica de Frei Bento Domingues















Fabrice Hadjadj



O demónio não é ateu

Frei Bento Domingues, o.p.

1.Já tinha sido atribuído a Fabrice Hadjadj, em 2005, o Grand Prix Catholique da literatura pelo ensaio sobre a morte como anti-método para viver (1). Este ano, as livrarias religiosas de França atribuíram-lhe um novo prémio por uma obra, muito original, sobre a fé e as astúcias dos demónios (2).

Mas quem é, afinal, Fabrice Hadjadj ignorado das nossas livrarias e editoras religiosas? É um judeu francês, de nome árabe e católico fervoroso. Nasceu em 1971, converteu-se aos 23 anos e foi baptizado na Abadia beneditina de Solesmes, aos 26 anos. É casado, pai de cinco filhas, dramaturgo, ensaísta, professor de literatura e de filosofia.

Não gosta de falar da sua conversão – é um processo permanente –, mas não esconde o seu começo paradoxal: “Foi através de Maria que encontrei Cristo, não como uma ideia, mas como uma pessoa bem viva. Tinha-me estado a rir, na igreja de Saint-Séverin – a culpa é de Voltaire! – dos ex-votos que rodeavam uma imagem de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro: sucesso nos exames; obrigado pela carta de condução, etc. Uma semana depois, meu pai ficou gravemente doente. Estávamos todos aflitos. Corri, então, para Saint-Séverin e rezei a essa Virgem de quem me tinha rido na véspera. Entrou em mim uma estranha paz. Nada de espectacular. Pelo contrário, sentia-me no meu lugar: uma criança que confessa a sua fraqueza e que reza pelos seus pais, algo bem mais radical do que matar o pai. A essência do ser humano é isto mesmo: a posição vertical ferida”.

Observaram-lhe, numa entrevista, que nada fazia prever este desenlace: “Tu nasceste numa família de confissão judaica e vens de um meio marxista. – Também eras anti-cristão?” Eis a resposta: “Como judeu, como esquerdista, como discípulo de Nietzsche, eu era tripla, feroz e violentamente anti-cristão. A palavra Deus provocava-me urticária. Era um tapa-buracos, uma maneira de alguém se esquivar aos problemas. Hoje, para mim, é uma palavra que abre o abismo, um modo de mergulhar no mistério. Esta conversão foi também uma conversão do meu vocabulário: as mesmas palavras que me pareciam antes mentirosas ou vazias, de repente, tornavam-se cheias de sentido. Um pouco como quando as escamas caíram dos olhos de Saulo”.

Não quer entrar em pormenores. Receia cair no romanesco e de dar a impressão que a conversão é um coroamento, quando, de facto, é um ponto de partida. Deus converte-nos todos os dias com a criação inteira. Tudo, a luz do dia, o perfume das rosas, o rosto das pessoas, mas também os dramas da existência, muito especialmente a Cruz, tudo existe para nos voltar cada vez mais para Ele. “Sim, é verdade que, num dia de Páscoa, aos 26 anos, fui baptizado na Abadia de Solesmes”.

2. O que esta conversão mudou na vida de Fabrice Hadjadj? “Não mudou nada na minha vida e, simultaneamente, mudou tudo. Continuo a ser eu próprio, com o coração à esquerda e uma forte miopia... Sempre quis ser escritor, mas só depois aconteceu, como se todas as coisas me aparecessem sob uma outra luz e com outra profundidade. O que, para alguns, poderá parecer paradoxal é que, a partir desta luz, reencontrei uma confiança especial na razão e na carne (3). Antes, estava perto de abandonar a filosofia e não queria ter filhos. Agora, acredito no trabalho da razão e esperamos, com a minha mulher, a nossa quinta filha. Acreditar no Criador não é fugir, mas reencontrar a criação inteira na sua fonte, no seu brotar. O caminho do céu é a terra”.

A conversão é uma graça: “O que me leva a escrever não é o zelo do convertido, mas sobretudo a alegria da inteligência e da poesia quando se aproximam do mistério e, mais precisamente, do mistério da Incarnação”.

3. Numa época em que se diz que o diabo não existe, como se atreve a consagrar-lhe uma obra? “Não consagro nada ao diabo. Acolho o Eterno que tem a vantagem de ser sempre mais antigo e sempre mais novo. Se falo dos demónios, sigo a iniciativa dos Evangelhos que não estão interessados em dizer que o diabo existe. Procuram fazer abortar as suas tentações e astúcias que se apresentam sempre sob a figura do bem. Não basta a fé. Uma certa fé também os diabos a têm. A Carta de São Tiago adverte-nos: Crês que há um só Deus? Óptimo. Os demónios também crêem e tremem. Jesus, ao entrar na sinagoga de Cafarnaum, depara com uma profissão de fé do demónio: Sei quem tu és, o Santo de Deus (Mc 1, 24). Jesus recusa as tentações diabólicas de um messianismo espectacular, baseado no êxito económico, político e religioso”. Esta recusa ficará, para sempre, como uma lição de vida para cada cristão e para a Igreja. É na fraqueza que se manifesta a força da graça divina. O diabo acredita num Deus de poder, não suporta a incarnação de um Deus de misericórdia.

Quando Fabrice Hadjadj descobriu a “fé dos demónios”, concluiu que, apesar de tudo, “o ateísmo e a libertinagem não eram o pior dos males. O demónio não é ateu nem carnal. Uma fé demoníaca é uma fé desincarnada, abstracta, sem amor nem compaixão. Em nome de caridades imaginárias, esquecemo-nos de amar o próximo que está à nossa porta ou, até, na nossa própria cama”… A fé verdadeira é o acolhimento humilde de Deus na nossa finitude e dos outros como dons da sua graça.

(1) Réussir sa mort. Anti-méthode pour vivre, Press de la Renaissance, Paris, 2005.

(2) La foi des démons ou l’athéisme dépassé, Salvator, Paris, 2009.

(3) La profondeur des sexes: Pour une mystique de la chair, Seuil, Paris, 2008.