Local de partilha dos leitores da Paróquia de Santa Maria Maior
« ORAÇÃO DO ABANDONO» (Carlos de Foucauld)
«Meu Pai, a vós me abandono: fazei de mim o que quiserdes! O que de mim fizerdes, eu vos agradeço. Estou pronto para tudo, aceito tudo, contanto que a vossa vontade se faça em mim e em todas as vossas criaturas. Não quero outra coisa, meu Deus. Entrego a minha vida em vossas mãos, eu vo-la dou, meu Deus, com todo o amor do meu coração, porque eu vos amo. É para mim uma necessidade de amor dar-me, entregar-me em vossas mãos sem medida, com infinita confiança, porque sois meu Pai.»
«Lâmpada para os meus pés e luz para o meu caminho» Salmos 115:105
domingo, 5 de dezembro de 2010
Avé Maria, tão pura Virgem nunca maculada ouvi a prece tirada no meu peito da amargura.
Vós que sois cheia de graça escutai minha oração, conduzi-me pela mão por esta vida que passa.
O Senhor, que é vosso Filho, que seja sempre conosco, assim como é convosco eternamente seu brilho.
Bendita sois vós, Maria, entre as mulheres da Terra e vos'alma só encerra doce imagem d'alegria.
Mais radiante do que a luz e bendito, oh Santa Mãe é o Fruto que provém do vosso ventre, Jesus!
Ditosa Santa Maria, Vós que sois a Mãe de Deus e que morais lá no céus, orai por nós cada dia.
Rogai por nós, pecadores, ao vosso Filho, Jesus, que por nós morreu na cruz e que sofreu tantas dores.
Rogai, agora, oh Mãe querida e (quando quiser a sorte) na hora da nossa morte quando nos fugir a vida.
Ave Maria, tão pura Virgem nunca maculada, ouvi a prece tirada no meu peito da amargura.
Entregue suas dores e alegrias a Maria... Ela as entregará a Jesus ! ... Confia na Mãe querida ! Que Nossa Senhora abençoe você e sua família !
Fernando Pessoa
terça-feira, 14 de setembro de 2010
Despolitizar as religiões
Frei Bento Domingues, o.p.
1.As celebrações religiosas sem emoção são uma seca, mas uma religião dominada, apenas, por fluxos emocionais cai na cegueira fundamentalista. A fórmula “fé e razão” – fé viva e razão inteligente – é uma proposta saudável de mútuo estímulo e de vigilância recíproca. Tornou-se, no entanto, recorrente falar da troca das grandes Igrejas clássicas, católicas ou protestantes, formalistas, doutrinais e dogmáticas, pelas Igrejas pentecostais e novos movimentos religiosos com narrativas de doenças e respectivas curas milagrosas, sublinhadas com música estridente.
Serão, todavia, respostas adequadas aquelas que copiam as práticas das Igrejas protestantes americanas, como fez, por exemplo, o católico filipino, Mariano Velarde, lançando, a sul de Manila, o movimento chamado “El Shaddai”? Fundado em 1980, reúne mais de oito milhões de fiéis. É o maior e mais discutido movimento religioso do arquipélago e já construiu um dos maiores templos de toda a Ásia. Não me parece que seja esse um grande exemplo de imaginação criadora perante os desafios que as mudanças culturais e religiosas pedem aos movimentos católicos, seja em que país for. Depois da euforia da moda, virá a depressão.
2. A Europa emancipada da influência cristã teme, agora, o “regresso da religião” confundido com as ameaças do fundamentalismo islâmico. Esquece a complexidade do fenómeno religioso. As religiões, como diz o historiador F. Diez de Velasco, são sistemas culturais e simbólicos que oferecem explicações do mundo que potenciam a estabilidade, mas também podem veicular forças de desarticulação. Apostam na paz, mas também utilizam a violência, sustentam a concórdia e a revolta. Aliás, as religiões não são apenas diversas, são também multifuncionais e manifestam-se na multiplicidade de experiências e de âmbitos, desde o individual e familiar – onde o culto é dirigido pelo pai ou pela mãe – até ao universal, passando pelo étnico, o imperial e o nacional (1).
Este panorama não diz a razão desses contrastes. Muitos dos que desejariam ver o fim das religiões julgam-nas, apenas, factores de violência que querem substituir por uma teoria universal da civilização. Peter Sloterdijk termina o seu livro sobre a “Loucura de Deus”, isto é, sobre o combate dos três monoteísmos, com uma nova confissão: “Repito-o como um credo e desejo que tenha suficiente energia para se propagar mediante línguas de fogo: o caminho da civilização é o único que ainda está em aberto”.
Inspirou-se num grande egiptólogo, Jan Assmann, mas não adoptou a sua subtileza que não confunde o monoteísmo com a violência. Para este, a questão real não consiste em universalizar a aliança entre religião e violência, mas antes tentar impedi-la e ultrapassá-la: “a meus olhos, o debate contemporâneo sobre as questões da religião e da violência sofre de uma falta de precisão que prejudica estes conceitos. O que procurei fazer neste ensaio foi delimitar e isolar o fenómeno da violência religiosa: em primeiro lugar, distinguindo-o de outras formas de violência e, depois, historicisando-o, isto é, reconduzindo-o ao seu contexto histórico de origem. O que me interessa é desactivar, de certa maneira, alguns textos que, nas mãos de fundamentalistas, podem, a qualquer momento, fazer explodir barris de pólvora. Em vez de a tornar serva da política, a religião ganharia em se entender como um contra-poder face à política. A sua força não deveria estar na violência, mas no abandono consequente da violência. Vejo o impulso original do monoteísmo bíblico na sua capacidade de traçar uma fronteira entre a dominação e a salvação, entre o poder político e o poder divino e em despojar os chefes mundanos da salvação e os chefes religiosos da violência. É este impulso, seguramente inscrito no cristianismo – sobre este ponto estou de acordo com René Girard – que nunca foi realizado e que é preciso activar, hoje, de forma consequente” (2).
Segundo este historiador, a violência religiosa não está inscrita na sua natureza e é, em última instância, uma contradição nos termos. A violência pertence ao campo da política, não ao da religião. Uma religião que se apodera da violência fica concentrada no domínio da política – impensável sem violência – e falha a sua verdadeira função neste mundo, cuja força deve ser a não-violência. É preciso despolitizar radicalmente as religiões monoteístas para libertar os seres humanos da omnipotência do cosmos, do Estado, da sociedade ou de qualquer outro sistema com pretensões totalitárias.
3. A força da religião deve ser, sem dúvida, a da não-violência. Para aí chegar, é preciso uma longa peregrinação. Essa é a do diálogo inter-religioso. Anselmo Borges acaba de publicar, sobre esta problemática, um livrinho que é, verdadeiramente, uma obra-prima (3). Se me irrita o prazer que alguns jornalistas manifestam em situar Portugal na cauda da Europa, não escondo que também me irrita a ignorância que observo, entre nós, na abordagem do fenómeno religioso. Já não há desculpa. Gostaria que este livro de bolso fosse a companhia de todos os que desejam saber do que falam, quando falam de religião.
(1)Francisco Diez de Velasco, Breve historia de las religiones, Madrid, Alianza Editorial, 2008, p. 17
(2)Jan Assmann, Violence et monothéisme, Paris, Bayard, 2009, pp. 9-10.
(3)Religião e Diálogo Inter-Religioso, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010.
quinta-feira, 5 de agosto de 2010
Afluentes do mar de Deus
5 deAgosto. Quinta-feira. Sol a pique. Vinha da feira, arrependida por lá ter ido. Filas de carros, calor abrasador, confusão de gente e de línguas… - Qu’est-ce? Não mexas aí, eu não te disse para não trazer o miúdo? - Três oiros. - Oh c’est trop cher! Num sei se tá pior aqui ou lá… Dei comigo com vontade de gritar «a minha pátria é a língua portuguesa» eternizando o autor da frase, Fernando Pessoa. Não o fiz e ala que se faz tarde, com zigues e zagues rumei para casa. Quando me aproximava do prédio onde vivo, na Quinta Nova antes de S. João de Deus, vejo um grupo de homens, destacando-se um com batina e um outro à cabeça do grupo com o crucifixo levantado, quase rumo ao céu, imponente… Segui-lhes os passos com Jesus Cristo na cruz a indicar caminhos. Mesmo em frente ao meu prédio, pararam debaixo de uma árvore, formaram um círculo e no centro ficou o padre e o jovem que elevava o crucifixo. Abeirei-me timidamente para não importunar. E rezaram… Rezaram o Pai Nosso e Glória em espanhol. Rezei com eles em português, porque entretanto fizeram-me um gesto para me aproximar. Fizeram uns minutos de silêncio com os olhos postos no Guia, o Guia de todos os caminhos, destes da terra e dos outros, os insondáveis, transcendentais, mais difíceis porque não são calcorreados com os pés. Quando partiam, perguntei-lhes de onde vinham. Partiram de Lisboa, foram a Fátima e iam para Santiago de Compostela. Eu ia para casa. Com um sorriso nos lábios. E com Jesus elevado na janela do meu olhar. Interiormente repetia em português, em francês, em galego, em inglês, em italiano «Que lindo!», «Que c’est beau!», «Que hermoso!», «How beautiful!», «Che bello!». Concluí que «a minha pátria é a língua portuguesa» e o meu lar é um dos caminhos porque todos os caminhos vão desaguar em Deus.
1.Apresentaram-me, há dias, um católico fervoroso de uma maneira curiosa: “este não é um cristão de aviário; foi ele que pediu, aos 35 anos, para ser baptizado”. Não achei nada de estranho.
No começo do Cristianismo, o Baptismo nasceu para celebrar a conversão de milhares de adultos. É, ainda hoje, a prática corrente em muitos países. Mesmo na velha Europa, incluindo Portugal, por motivos e caminhos muito diversos, o Baptismo já não é só pedido para crianças.
Em caso nenhum, porém, se pode falar de cristãos de aviário. Tertuliano (155-222), um tunisino convertido, o primeiro grande intelectual cristão, cunhou uma fórmula exemplar: “ninguém nasce cristão, torna-se cristão”. Mesmo aqueles que recebem o Baptismo em criança celebram o começo de uma caminhada, não o de uma fatalidade.
O termo português baptismo é a transliteração do grego baptismō e significa banho, associado aos verbos: mergulhar, lavar, derramar. A partir dessa realidade empírica e simbólica assumiu, no plano religioso, o sentido de purificação e de nova vida.
A grande dificuldade, no próprio imaginário de muitas iniciações ao Baptismo cristão, consiste em tomar como seu antecedente directo o Baptismo que João ministrou a Jesus no rio Jordão.
É verdade que Jesus de Nazaré levou, como homem, muito tempo a encontrar o seu próprio caminho e a sua missão. Foi discípulo de João Baptista, de quem nunca disse mal, antes o elogiou como a ninguém, mas desligou-se dele e escolheu outro género de vida. O que marcou a originalidade de Jesus não foi o Baptismo de João. Qual terá sido, então, a experiência que o fez romper com esse grande profeta?
S. Lucas – assim como os outros evangelistas – contam o que se passou:tendo Jesus sido baptizado, e estando em oração, o Céu rasgou-se; o Espírito Santo desceu sobre Ele em forma corpórea, como uma pomba. Do Céu veio uma voz: «Tu és o meu Filho muito amado; em ti me comprazo» (Lc 3, 21-22).
Foi esta experiência mística, foi este banho de Espírito Santo, que alterou o rumo da sua vida. É a partir daqui que se pode falar de antes e depois de Cristo. Lucas vai dizê-lo, de forma explícita: A Lei e os profetas até João. Daí em diante, é anunciada a Boa Nova do Reino de Deus. O IV Evangelho ainda é mais incisivo: A Lei foi dada por meio de Moisés; a graça e a verdade nos vieram por Jesus Cristo (Jo 1, 15-34).
2. As Igrejas de Jesus Cristo ressuscitado são fruto do Pentecostes. Pelo menos, é assim que são apresentadas, de muitas maneiras, pelos Actos dos Apóstolos. Os primeiros convertidos perguntaram a Pedro e aos apóstolos: Irmãos, que devemos fazer? A resposta já resume, sem dúvida, práticas simbólicas das comunidades cristãs: Convertei-vos e seja cada um de vós baptizado em nome de Jesus Cristo, para a remissão dos pecados e recebereis, então, o dom do Espírito Santo (Act 2, 37-38). Um ritual é um programa de acção simbólica. Deus, porém, não está dependente dos rituais. Estes não são a única forma da sua actuação, não têm o exclusivo da sua graça. Nos capítulos 10 e 11, conta-se que, sem ritual nenhum, enquanto Pedro falava, o Espírito Santo – sem lhe pedir licença – caiu sobre todos os que ouviam a palavra e concluiu com muito bom senso: Pode-se porventura, recusar a água do Baptismo a esses que, como nós, receberam o Espírito Santo? Este desembaraço, em Cesareia, criou-lhe muitos problemas, em Jerusalém, onde foi obrigado a justificar-se perante judeus circuncisos, que não admitiam que o Espírito de Deus andasse à solta entre os pagãos. Convém não esquecer que antes, durante e depois da acção ritual é em Deus que vivemos, nos movemos e existimos. As acções simbólicas não existem para provocar a acção de Deus, mas para nos abrirmos à sua intervenção. Para justificar os sacramentos, temos a tendência em restringir a acção de Deus, anexando-a aos rituais, esquecendo que somos nós, seres simbólicos por natureza, que precisamos dessas mediações, que não podem encurtar a divina liberdade.
3. Consta de uma homilia de S. Gregório, bispo de Nisa (século IV), a seguinte oração baptismal: “Eu te marco em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, para que sejas cristão: os olhos, para que vejas a luz de Deus; os ouvidos, para que ouças a voz do Senhor; o nariz, para que percebas o suave odor de Cristo; os lábios, para que, uma vez convertido, confesses o Pai, o Filho e o Espírito Santo; o coração, para que creias na Trindade indissolúvel. O Verbo santificou-nos, o Espírito marcou-nos; o homem novo saiu ao mundo encontrando de novo a sua juventude pela graça”.
Que não pode haver “cristãos de aviário” é o próprio ritual do baptismo da criança que o diz. Os pais e padrinhos comprometem-se a realizar um programa de educação, em liberdade, num mundo em transformação. Se proclamam que não vale tudo, é preciso não se deixar enganar pelas seduções do mal sempre com novos rostos. Sem a descoberta permanente de Cristo, como fonte de sentido, de beleza, de responsabilidade e sem a força da sua graça é impossível ser fiel a esse programa numa vida em devir.
sábado, 19 de junho de 2010
"Na oração, quando a linguagem humana tem dificuldades em expressar o que vai nas profundezas de nós mesmos, não nos inquietemos. Numa oração, feita apenas de silêncio, descansamos em Deus, de corpo, de alma e de espírito.
Quando estamos a rezar, que fazer com as distracções? Não nos preocupemos com elas. Deus conhece o nosso anseio. E, melhor do que nós, Ele percebe a intenção e o íntimo do nosso ser."
Na oração, deparamos muitas vezes com reflexões e imagens a entrecruzarem-se no nosso espírito. Quando damos connosco a dizer: «Extraviam-se-me os pensamentos, o meu coração está dividido», o Evangelho responde-nos: «Deus é maior do que o nosso coração».
quinta-feira, 17 de junho de 2010
José Luís Peixoto - 1974 Deus, anda cá
Afinal, não era preciso chamá-lo. Já cá estava. Eles dizem que Deus vê tudo o que fazemos. Vê o obsceno, vê o repugnante, vê o miserável. Deus vê o invisível. Se existir céu e inferno, fico contente por ti, mas, por mim, sinto um certo receio. Repara, eles não dizem que Deus vê algumas das coisas que fazemos, não dizem que Deus vê apenas aquilo que é mais interessante ou susceptível de ser considerado na equação céu/inferno. Não, eles dizem que Deus vê tudo o que fazemos: tudo. Quando dormimos, Deus olha pacientemente para nós. Já olhei para ti enquanto dormias. Compreende que Deus não se canse de fazê-lo. Também quando esperamos, Deus assiste à nossa espera. Também quando lavamos o carro numa estação de serviço. Também quando passeamos num jardim ao domingo.Ainda assim quero pedir-te que não imagines Deus como um velho reformado, sem vida própria, submerso em memórias, sozinho, sentado num cadeirão gasto, a ver televisão numa sala com os estores corridos. Nada é assim tão simples. Nem mesmo esse velho reformado é assim tão simples. Deus não vê apenas, Deus sabe. Ao contrário de mim, Deus não se detém perante o teu rosto, tentando perceber se queres ou não queres, se gostaste ou não gostaste, tentando perceber o que significa aquilo que dizes e aquilo que insistes em calar. Deus sabe a distância precisa entre a ponta do teu nariz e o z desta palavra: nariz. Sabendo tudo, Deus sabe muita informação desnecessária. Sabe tudo o que sabemos e tudo o que não sabemos. Quando estamos errados, Deus sabe detectar o erro, sabe corrigi-lo e sabe todas as possibilidades de resolução do problema, sem erro, com erro e com todos os erros possíveis. Deus é mais exacto do que a Matemática. Melhor do que nós, Deus consegue entender a razão de cada gesto porque conhece todos os pormenores da sua história e relaciona-os através da verdade. Deus consegue ver o passado com a mesma nitidez absoluta com que olha o presente. Nas grandes multidões, nos apertos antes da entrada nos estádios, nos concertos, eles dizem que Deus está lá a seguir cada pessoa e, para atenção de Deus, cada um desses indivíduos é um mundo inteiro e completo. Eles dizem que Deus só pensa em nós. Passa todo o tempo a ver-nos por dentro e por fora. Testemunha cada episódio da luta que travamos com os nossos instintos, com os nossos impulsos e com os impulsos que surgem no nosso caminho. O nosso caminho não é uma estrada. Não sabemos o que é. Às vezes, parece que Deus nos colocou aqui como ratinhos num labirinto e, enquanto tira notas, espera que um dia encontremos a saída. Nascemos um dia. Chegámos de onde não sabíamos nada e, consoante o que encontrámos, fomos aprendendo. Eles dizem que Deus assistiu a todos esses momentos. A sua mente não divagou, não se desinteressou. Eles dizem que Deus nos vê desde o início, desde quando não sabíamos nenhuma palavra. Eu também te vi quando ainda não sabias nenhuma palavra. Eles dizem que Deus nos viu nascer. Eu também te vi nascer. Essa é uma das experiências que partilhei com Deus. Sabes, apesar de estarem quase a passar doze anos sobre esse momento, também eu o consigo ver ainda com nitidez absoluta. Acredito que nunca se apagará de mim. Ao contrário de Deus, eu sempre andei longe, o meu olhar foi espaçado, mas acredita, filho, nunca te esqueci, nunca deixaste de ser parte de mim. Não foi por querer que não pousei o cobertor sobre o teu corpo antes de dormires. Não foi por querer que não brinquei contigo assim que acordaste. Demorará até que entendas, mas esperarei o tempo que for necessário. Se Deus é pai como eles dizem, então deixa-me contar-te um pouco do amor que Deus tem por ti: Deus acredita que o amor que sente por ti é maior que ele próprio, Deus acredita que os lugares onde está não são todos porque tem a certeza de que o amor que sente por ti é maior do que todos esses lugares, Deus acredita que não sabe tudo porque o amor que sente por ti é maior do que tudo. Sendo teu pai, Deus também é teu filho, filho.
sábado, 12 de junho de 2010
Crónica de Frei Bento Domingues
Fabrice Hadjadj
O demónio não é ateu
Frei Bento Domingues, o.p.
1.Já tinha sido atribuído a Fabrice Hadjadj, em 2005, o Grand Prix Catholique da literatura pelo ensaio sobre a morte como anti-método para viver (1). Este ano, as livrarias religiosas de França atribuíram-lhe um novo prémio por uma obra, muito original, sobre a fé e as astúcias dos demónios (2).
Mas quem é, afinal, Fabrice Hadjadj ignorado das nossas livrarias e editoras religiosas? É um judeu francês, de nome árabe e católico fervoroso. Nasceu em 1971, converteu-se aos 23 anos e foi baptizado na Abadia beneditina de Solesmes, aos 26 anos. É casado, pai de cinco filhas, dramaturgo, ensaísta, professor de literatura e de filosofia.
Não gosta de falar da sua conversão – é um processo permanente –, mas não esconde o seu começo paradoxal: “Foi através de Maria que encontrei Cristo, não como uma ideia, mas como uma pessoa bem viva. Tinha-me estado a rir, na igreja de Saint-Séverin – a culpa é de Voltaire! – dos ex-votos que rodeavam uma imagem de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro: sucesso nos exames; obrigado pela carta de condução, etc. Uma semana depois, meu pai ficou gravemente doente. Estávamos todos aflitos. Corri, então, para Saint-Séverin e rezei a essa Virgem de quem me tinha rido na véspera. Entrou em mim uma estranha paz. Nada de espectacular. Pelo contrário, sentia-me no meu lugar: uma criança que confessa a sua fraqueza e que reza pelos seus pais, algo bem mais radical do que matar o pai. A essência do ser humano é isto mesmo: a posição vertical ferida”.
Observaram-lhe, numa entrevista, que nada fazia prever este desenlace: “Tu nasceste numa família de confissão judaica e vens de um meio marxista. – Também eras anti-cristão?” Eis a resposta: “Como judeu, como esquerdista, como discípulo de Nietzsche, eu era tripla, feroz e violentamente anti-cristão. A palavra Deus provocava-me urticária. Era um tapa-buracos, uma maneira de alguém se esquivar aos problemas. Hoje, para mim, é uma palavra que abre o abismo, um modo de mergulhar no mistério. Esta conversão foi também uma conversão do meu vocabulário: as mesmas palavras que me pareciam antes mentirosas ou vazias, de repente, tornavam-se cheias de sentido. Um pouco como quando as escamas caíram dos olhos de Saulo”.
Não quer entrar em pormenores. Receia cair no romanesco e de dar a impressão que a conversão é um coroamento, quando, de facto, é um ponto de partida. Deus converte-nos todos os dias com a criação inteira. Tudo, a luz do dia, o perfume das rosas, o rosto das pessoas, mas também os dramas da existência, muito especialmente a Cruz, tudo existe para nos voltar cada vez mais para Ele. “Sim, é verdade que, num dia de Páscoa, aos 26 anos, fui baptizado na Abadia de Solesmes”.
2. O que esta conversão mudou na vida de Fabrice Hadjadj? “Não mudou nada na minha vida e, simultaneamente, mudou tudo. Continuo a ser eu próprio, com o coração à esquerda e uma forte miopia... Sempre quis ser escritor, mas só depois aconteceu, como se todas as coisas me aparecessem sob uma outra luz e com outra profundidade. O que, para alguns, poderá parecer paradoxal é que, a partir desta luz, reencontrei uma confiança especial na razão e na carne (3). Antes, estava perto de abandonar a filosofia e não queria ter filhos. Agora, acredito no trabalho da razão e esperamos, com a minha mulher, a nossa quinta filha. Acreditar no Criador não é fugir, mas reencontrar a criação inteira na sua fonte, no seu brotar. O caminho do céu é a terra”.
A conversão é uma graça: “O que me leva a escrever não é o zelo do convertido, mas sobretudo a alegria da inteligência e da poesia quando se aproximam do mistério e, mais precisamente, do mistério da Incarnação”.
3. Numa época em que se diz que o diabo não existe, como se atreve a consagrar-lhe uma obra? “Não consagro nada ao diabo. Acolho o Eterno que tem a vantagem de ser sempre mais antigo e sempre mais novo. Se falo dos demónios, sigo a iniciativa dos Evangelhos que não estão interessados em dizer que o diabo existe. Procuram fazer abortar as suas tentações e astúcias que se apresentam sempre sob a figura do bem. Não basta a fé. Uma certa fé também os diabos a têm. A Carta de São Tiago adverte-nos: Crês que há um só Deus? Óptimo. Os demónios também crêem e tremem. Jesus, ao entrar na sinagoga de Cafarnaum, depara com uma profissão de fé do demónio: Sei quem tu és, o Santo de Deus (Mc 1, 24). Jesus recusa as tentações diabólicas de um messianismo espectacular, baseado no êxito económico, político e religioso”. Esta recusa ficará, para sempre, como uma lição de vida para cada cristão e para a Igreja. É na fraqueza que se manifesta a força da graça divina. O diabo acredita num Deus de poder, não suporta a incarnação de um Deus de misericórdia.
Quando Fabrice Hadjadj descobriu a “fé dos demónios”, concluiu que, apesar de tudo, “o ateísmo e a libertinagem não eram o pior dos males. O demónio não é ateu nem carnal. Uma fé demoníaca é uma fé desincarnada, abstracta, sem amor nem compaixão. Em nome de caridades imaginárias, esquecemo-nos de amar o próximo que está à nossa porta ou, até, na nossa própria cama”… A fé verdadeira é o acolhimento humilde de Deus na nossa finitude e dos outros como dons da sua graça.
(1)Réussir sa mort. Anti-méthode pour vivre, Press de la Renaissance, Paris, 2005.
(2)La foi des démons ou l’athéisme dépassé, Salvator, Paris, 2009.
"Às vezes quando, abatido e humilde, a própria força de sonhar se me desfolha e me seca, e o meu único sonho só pode ser o pensar nos meus sonhos, é então que me interrogo sobre quem tu és, Nossa Senhora do Silêncio... Figura que atravessa todas as minhas visões demoradas de paisagens outras, de interiores antigos, de cerimoniais faustosos de silêncio. Visito contigo regiões que são talvez sonhos teus, terras que são talvez corpos teus de ausência e de desumanidade. Talvez eu não tenha outro sonho senão tu. Talvez seja nos teus olhos, encostando a minha face à tua, que lerei essas paisagens impossíveis, esses tédios falsos, esses sentimentos que habitam a sombra dos meus cansaços e as grutas dos meus desassossegos. Que espécie de vida tens? Que modo de ver é o modo como te vejo? Teu perfil nunca é o mesmo mas nada muda. Eu digo isso porque eu sei, ainda que não saiba o que sei. Tu não és mulher, nem mesmo dentro de mim evocas qualquer coisa que eu possa sentir feminina. É quando falo de ti, é quando as palavras te chamam fêmea e as expressões te contornam de mulher que eu tenho de te falar com ternura e amoroso. Ocupas o intervalo dos meus pensamentos e os interstícios das minhas sensações. Por isso eu não penso nem sinto mas os meus pensamentos são ogivais de te sentir e os meus sentimentos góticos de evocar-te. Ah Nossa Senhora do Silêncio! Ó Lua de memórias perdidas sobre a negra paisagem do vazio da minha imperfeição. Debruço-me sobre o teu rosto branco nas águas nocturnas do meu desassossego, no meu saber que és lua. "
terça-feira, 27 de abril de 2010
Crónicas
de
Frei Bento
Domingues
In Público
A COMISSÃO NACIONAL DE SOCORRO AOS PRESOS POLÍTICOS Frei Bento Domingues, O.P.
1.A produção sobre a história de Portugal do século XX já é importante. No entanto, que eu saiba, ainda não existe uma obra que abranja a história dos presos políticos em Portugal e nas ex-Colónias, durante o regime de Salazar e Marcello Caetano. Em 2007, foi publicado, na Assírio & Alvim, com grande dignidade gráfica, um ensaio jornalístico de Rui Daniel Galiza e João Pina. O seu título, Por Teu Livre Pensamento, é o primeiro verso do Fado Abandono da autoria de David Mourão-Ferreira – com música de Alain Oulman – cantado por Amália Rodrigues. Devido à sua letra, ficou justamente conhecido por Fado de Peniche. Este ensaio recolheu, com apurado critério, Histórias de 25 Ex-Presos Políticos Portugueses. Na sua apresentação, Jaime Gama – também ex-preso político – nota que “das personalidades abrangidas, diversos foram os compromissos, as origens e os trajectos humanos, profissionais e políticos, mas dolorosamente comum foi a experiência da prisão arbitrária, por motivos ideológicos, a tortura com imensa violência, a humilhação do regime carcerário, a solidão, o prolongado sofrimento. O Tarrafal, o Aljube, Caxias, Peniche e Angra são os espaços circunscritos mais em evidência neste roteiro de heroísmos”. 2. Desde os finais do ano passado, mais precisamente, desde o dia 29 de Dezembro de 2009, a Comissão Promotora do 40º Aniversário da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos (CNSPP) tem promovido algumas iniciativas para lembrar uma história exemplar de resistência à ditadura de Salazar-Marcello Caetano: “Talvez pela primeira vez na história da Oposição – como lembrou Nuno Teotónio Pereira – esta comissão era suprapartidária, constituída por muitos elementos independentes de partidos políticos e por outros ligados às diferentes formações partidárias que constituíam a oposição ao regime. É assim que, além daqueles elementos independentes, entre os quais nove padres católicos e um pastor evangélico, faziam parte da Comissão pessoas ligadas ao PCP, ao futuro Partido Socialista e às várias correntes marxistas-leninistas que então despertavam para a acção”. Há quem pergunte como foi possível constituir uma comissão tão unida a partir de tantas divergências, de percursos humanos, políticos e religiosos tão diversos? Como nota, ainda, o grande obreiro desta iniciativa, o citado Nuno Teotónio Pereira – a quem sigo nesta crónica – para a superação das dificuldades de entendimento, muito contribuiu o empenhamento de pessoas como Maria Eugénia Varela Gomes, Cecília Areosa Feio e Maria Natália Teotónio Pereira, secundadas pelos advogados José Augusto Rocha, Levi Baptista, Manuel João da Palma Carlos e Mário Brochado Coelho. Não sendo uma tarefa fácil, foi realizada com uma tal lealdade e desprendimento que cumpriu, exemplarmente, os seus objectivos. A frágil base legal para a criação e funcionamento da CNSPP foi encontrada no artº 199º do Código Civil: "as Comissões [Especiais] constituídas para realizar qualquer plano de socorro ou beneficência, ou promover a execução de obras públicas, monumentos, festivais, exposições, festejos e actos semelhantes, se não o pedirem ou não o obtiverem, ficam sujeitas (...) às disposições subsequentes". Estas disposições responsabilizavam os promotores "pela conservação de fundos recolhidos e pela sua afectação ao fim anunciado", o que a CNSPP cumpriu escrupulosamente. 3. Ao longo de mais de quatro anos de actividade, a Comissão publicou 23 circulares informativas, dando notícias das prisões, das práticas de tortura, dos julgamentos efectuados, das penas aplicadas, das condições prisionais que vigoravam nas diferentes cadeias, das acções de solidariedade, das reclamações feitas junto das autoridades, assim como das suas próprias actividades. Nestas, incluía-se o apoio financeiro às famílias de presos políticos, a designação de advogados de defesa e outras iniciativas, como foi a realização de colónias de férias para filhos de presos políticos em 1972 e 1973. As denúncias e protestos levados a efeito pela CNSPP incluíam também as perseguições a patriotas das colónias e, por isso, abrangiam as condições existentes no Tarrafal em Cabo Verde, no presídio de S. Nicolau em Angola, nos campos de concentração da Machava e na Ilha do Ibo em Moçambique. As circulares também davam conta de algumas diligências de Francisco Sá Carneiro, Miller Guerra e outros deputados da chamada “ala liberal” para alterar a legislação referente aos presos políticos e ao seu julgamento. É de recordar, também, que um grupo destes deputados chegou a visitar a cadeia do Forte de Peniche para se inteirar das condições em que viviam os presos. Não logrou, porém, visitar o Forte de Caxias onde se exerciam as torturas sobre os detidos durante a instrução dos processos. Espera-se que esta comemoração encoraje alguns investigadores a fazer a história dos presos políticos durante o regime de Salazar-Marcello Caetano. É indispensável, entretanto, fazer uma nova edição dos Documentos que testemunham o imenso trabalho da CNSPP que teria sido impossível se não fosse a colaboração de muitos anónimos que não constam na lista dos 48 signatários da carta enviada a Marcello Caetano a 31 de Dezembro de 1969.
CONTRA A VELHICE E A MORTE Frei Bento Domingues, O.P.
1.Para além do meramente factual, talvez nunca seja possível dizer algo de indiscutível, de aceite por todos, acerca da morte e da velhice. Li, na Babelia, duas notícias bastante desenvolvidas sobre duas obras literárias que me impressionaram pela sua aparente banalidade. A primeira referia-se ao Libro de los muertos do grande escritor Elias Canetti, judeu sefardita (1905-1994). É constituído por cadernos de apontamentos que testemunham a sua permanente “declaração de guerra à morte”. Para ele, mais repugnante do que a morte, é a submissão à morte: “O objecto sério e concreto, a meta declarada e explícita da minha vida é conseguir a imortalidade para todos os homens. Em tempos, quis dar este objectivo ao personagem central de um romance que a si mesmo se chamava o inimigo da morte”. Do seu projecto de matar a morte ficaram fragmentos e aforismos de luta, agora publicados. Dizer, como Fernando Savater, que se trata de um protesto contra o irremediável, não é sinal de grande argúcia. A segunda é sobre um romance, El don de la vida, acerca da velhice e da morte, de Fernando Vallejo, escritor colombiano. Retardou-o quanto pôde, mas apressou-se, agora, a escrevê-lo com 67 anos. Gostaria de esperar pelos 78 ou 80 anos para o elaborar a partir da sua própria experiência. Teme, porém, que, nessa idade, já não lhe apeteça, já não tenha gosto nenhum em falar da velhice. Dir-se-á que sobre esta idade há atitudes prosaicas mais eficazes do que as obras literárias ou filosóficas. Segundo consta, a medicina anti-envelhecimento, focada na prevenção e detecção precoce de uma patologia, está apoiada em cinco pilares: nutrição, medicina desportiva, estética, optimização hormonal e genética e biologia molecular. Como ainda não se consegue evitar o envelhecimento, aconselha-se a envelhecer com qualidade. Esta dependeria de sete factores: prática regular de exercício físico, uma boa alimentação, não fumar, não beber bebidas alcoólicas, manter um peso regular, dormir sete a oito horas e estimular o cérebro. As consequências da revolução biotecnológica e dos avanços da neurofarmacologia ainda estão cheios de incógnitas que a Bioética tem de seguir com cuidado, pois os cenários possíveis não são todos igualmente desejáveis. Não se esqueça a sentença de Paracelso: “não são os olhos que fazem o homem ver; é o ser humano que faz com que os olhos vejam”. 2. Por enquanto, todos esses avanços, na direcção de uma vida longa e feliz, ainda não conseguem “matar a morte” como desejava Elias Canetti. Como preencher, em nós, o grande vazio deixado pela morte daqueles que amamos? A morte tornou-se, no entanto, nas sociedades modernas, um tabu, um desejo de a negar ou, pelo menos, de a esconder. No entanto, as obras acerca da arte de bem morrer e de responder às perguntas sobre o Além estão sempre a aumentar. Nem sequer faltam enciclopédias acerca de todos os saberes e crenças sobre a morte e a imortalidade. As várias religiões encenaram, na sua linguagem simbólica e nos seus ritos, formas de reanimar o grande vazio deixado pela morte. Desde a Antiguidade, segundo os diferentes povos e culturas, projectaram-se para depois da morte os cenários geográficos do que havia de melhor, de pior e também de medíocre neste mundo. Dir-se-á que essa imaginária duplicação do mundo só prova que o desejo de ser humano para sempre é incurável, mas o desejo não é suficiente para fundar uma realidade. O único caminho aconselhável seria o da reconciliação com os nossos limites. O que não tem remédio, remediado está. É, porém, aqui, que tudo se complica. Enquanto certas formas de sabedoria se empenham em erradicar o desejo até ao vazio total, para atingir a verdadeira iluminação, passando quase sempre por diversas reencarnações, há outros caminhos que, longe de trabalharem pela aniquilação dos desejos, os intensificam, exigindo, no entanto, a sua conversão, um nascer de novo. 3. No cristianismo juntaram-se, no seu nascimento e ao longo dos séculos, várias influências. Na Quarta Feira de Cinzas, nas palavras do seu antigo ritual, há uma antropologia pouco entusiasmante que roça o niilismo: lembra-te que és pó e em pó te hás-de tornar. Não é, porém, nessa declaração, que se pode encontrar a originalidade da revelação cristã. Esta é apresentada por S. Lucas. Jesus enviou em missão os discípulos que regressaram entusiasmados com o êxito do seu trabalho. Jesus confirmou que tudo aquilo tinha sido espantoso, mas não quis apoiar uma Igreja do sucesso: Não vos alegreis pelo facto de nada deste ou de outro mundo ter resistido à vossa palavra; alegrai-vos, sobretudo, porque os vossos nomes estão escritos nos Céus. O mais interessante é que o próprio Jesus se comoveu com o que disse: muitos profetas e reis quiseram ver o que vedes e não viram, ouvir o que ouvis e não o ouviram (Cf. Lc 10, 17-22). Afinal, que disse Jesus de tão inaudito? Traduzindo: alegrai-vos porque a vossa vida está para sempre inscrita no coração de Deus e nada nem ninguém vos poderá arrancar desse amor. Sois pessoas amadas para sempre. Não há morte que possa vencer este amor.
quarta-feira, 31 de março de 2010
REDENÇÃO
de Almeida Garrett
Tu morreste por nós na cruz da afronta, e o sangue derradeiro derramaste do alto do madeiro, Jesus, filho de Deus, Deus verdadeiro!
Aos crimes do homem não lançaste a conta, inocente cordeiro, quando foste no alto do madeiro lavar, com sangue, o último e o primeiro.
E naquela hora o mundo foi mudado: a antiga, frouxa luz se apagou no Calvário ao pé da Cruz; e agora é novo sol que reluz.
Por desiguais direitos, afrontosos para o pobre que lida, que trabalha, que sua pela vida, andava a terra pelos reis regida.
Vãos sabedores, ricos poderosos a tinham submetida ao erro torpe que embrutece a vida e que apaga a razão n'alma perdida.
Acabaram-se as leis dos reis da terra; e esta só lei ficou: "O Rei que está na Cruz nos libertou E com seu sangue a todos igualou".
1.O cristianismo não nasceu in vitro, como resultado artificial de laboratório, nem caiu do céu como um meteorito. Para entender o sentido dos acontecimentos que a Semana Santa cristã celebra, é preciso recorrer aos textos do Novo Testamento. Estes, por sua vez, tiveram de recorrer a certas passagens do Antigo Testamento para descobrirem a significação do escândalo vivido pelos apóstolos perante a morte do seu Mestre. Sendo assim, o cristão não pode dispensar o conhecimento de toda a Bíblia, tida por mensagem divina em palavras humanas. Para afirmar a originalidade do Evangelho de Jesus Cristo – Evangelho do amor e da misericórdia – um teólogo gnóstico da Ásia Menor, Marcião (81-160), recusou o Antigo Testamento que, para ele, era obra de um Deus mau e vingativo. Com esta atitude, mostrava que não conseguia entender que a Bíblia fosse retrato de vários mundos e espelho da condição humana no que tem de melhor e de pior.
Hoje, quem olha só para as capas da Bíblia não se dá conta que está perante uma pequena biblioteca, muito variada sob todos os pontos de vista. Figuram nela, sobretudo no Antigo Testamento, os diferentes géneros literários correntes entre os povos do Próximo Oriente, especialmente entre os povos semitas, no primeiro milénio antes de Cristo. Os livros que a constituem foram escritos em várias línguas (hebraico, aramaico e grego), em vários países (Palestina, Egipto e Babilónia) e, tendo em conta os textos do Novo Testamento, durante mais de um milénio.
2. A marca desta literatura não é a unidade, mas a diversidade. O acrónimo hebraico – Tora-Nebî’îm-Ketubîm, isto é, Lei-Profetas-Escritos, uma das designações correntes das Escrituras judaicas – exprime melhor a sua variedade do que a simples e a habitual expressão cristã Antigo Testamento. O sentido de unidade é, em grande parte, o resultado das suas leituras confessionais, sejam elas cristãs ou judaicas. Quando se não tem isto em conta, resvala-se para um mundo de contradições que nenhum concordismo pode salvar.
A diversidade que caracteriza o Antigo Testamento reflecte a realidade histórica dos sucessivos grupos humanos que nele se expressam. A ideia de um Israel protagonista de toda a história veterotestamentária é uma criação dos autores bíblicos. A variedade do Antigo Testamento não se deve só às mudanças que se deram no decorrer do tempo, entre os começos dos dois reinos hebraicos e o judaísmo dos últimos séculos da era pré-cristã. Muitos dos seus textos representam as posições de grupos particulares que se expressam ora de forma conciliadora, ora de forma polémica. A diversidade manifesta-se de maneira flagrante, no campo religioso e, em concreto, na teologia propriamente dita. No Antigo Testamento há diversas perspectivas religiosas e diferentes concepções de Deus que até estiveram em concorrência. Da concepção de Deus que professava cada grupo dependiam as ideias que ele tinha de si próprio e das instituições nacionais (1).
3. Em Portugal, desde algumas décadas, foi desenvolvido um certo esforço de iniciação à leitura da Bíblia. No entanto, o contacto mais frequente com essa literatura acontece nos textos seleccionados para a celebração da Missa. Essa escolha é exagerada para um tempo tão reduzido dedicado a cada celebração. Por outro lado, poucas são as boas escolas de leitores. A ponte entre elas e as experiências das comunidades – tarefa da homilia – raramente atinge o seu objectivo.
Fui, recentemente, envolvido numa comovente experiência bíblica. Em Barcelos, o pároco de Santa Maria Maior, Abílio Cardoso – conhecido pelas suas iniciativas pastorais inteligentes e imaginativas – teve mais uma ideia, não só inspirada, mas inspiradora. No ano passado, a Bíblia foi tratada, como se sabe, por José Saramago com grande alarido nos meios de comunicação. O Padre Abílio Cardoso com os seus colaboradores, em vez de alimentar polémicas, aproveitou a ocasião para estudar o modo de libertar a Palavra divina presa ao passado, aos “lugares sagrados” e de levar a Bíblia – voz de muitas vozes – para a rua, para os chamados espaços profanos, onde ela não tem só algo de essencial a dizer, mas também muito que ouvir dos católicos não praticantes, dos agnósticos e dos ateus.
O programa, servido por um marketing nada agressivo, muito simples e eficaz, desenvolveu-se durante uma semana inteira: de 7 a 14 de Março. Praças públicas, ruas, cafés, auditórios foram lugares para tempos muito criativos de interpelação, de diálogo, de conhecimento partilhado, em clima descontraído e festivo. Um acontecimento.
Em muitos lugares de Portugal, na Semana Santa, as ruas e as praças eram percorridas por manifestações impressionantes. Precisavam e precisam, certamente, de uma recriação que exprima, de novo, o Evangelho da esperança. A sede de espiritualidade, seja em antigas ou em novas formas culturais, não desapareceu.
Tanta música, tanta poesia, tantas formas de arte que nos podem levar às fronteiras do inexprimível e que, por receio de velhos fantasmas, insistimos em ocultar ou reprimir. No entanto, aí vive a matriz mais sólida e profunda da nossa cultura.
(1)Cf. Francolino Gonçalves, O messianismo no Antigo Testamento, in Cadernos ISTA, nº 14 (2002), pp. 47-89.
quinta-feira, 25 de março de 2010
Prece
Meu Deus, aqui me tens aflito e retirado,
Como quem deixa à porta o saco para o pão.
Enche-o do que quiseres. Estou firme e preparado.
O que for, assim seja, à tua mão.
Tua vontade se faça, a minha não.
Senhor, abre ainda mais meu lado ardente,
Do flanco de teu Filho copiado.
Corre água, tempo e pus no sangue quente:
Outro bem não me é dado.
Tudo e sempre assim seja,
E não o que a alma tíbia só deseja.
Se te pedir piedade, dá-me lume a comer,
Que com pontas de fogo o pobre se adormenta.
O teu perdão de Pai ainda não pode ser,
Mas lembre-te que é fraca a alma que aguenta:
Se é possível, desvia o fel do vaso:
Se não é, beberei. Não faças caso.
Vitorino Nemésio
segunda-feira, 15 de março de 2010
Michel Quoist, in “Poemas para rezar”
"Gostodos garotos, diz Deus. Quero ver toda a gente parecer-se com eles. Não gosto dos velhos, diz Deus, a não ser que ainda sejam garotos. Por isso no meu Reino Eu só quero garotos, desde sempre está decretado. Garotos curvados, garotos corcundas, garotos com rugas, garotos de barbas brancas, toda a espécie de garotos que quiserem, mas garotos, só garotos. Não se volta atrás, está decidido: para os outros não há lugar. Gosto dos garotinhos, diz Deus, porque neles a minha imagem ainda não se embaciou. Não falsearam a minha semelhança, são novos, são puros, sem rasuras, sem marcas de uso. Assim, quando suavemente sobre eles me debruço, neles me reencontro. Gosto dos garotos, porque estão ainda a crescer, ainda estão a subir. Estão a caminho, caminhando. Mas a gente grande, diz Deus, já não tem ponta por onde se lhe pegue. Não mais crescerá, não mais subirá. Parou. É um desastre, diz Deus, a gente grande, sempre a julgar que já chegou ao fim. Gosto dos garotos grandes, porque ainda estão a lutar, porque ainda fazem pecados. Não é por os fazerem, diz Deus, entendamo-nos, mas porque sabem que os fazem, e o dizem, e fazem por não fazê-los mais. Mas a gente grande, diz Deus, não gosto dela, nunca faz mal a ninguém, não acha nada a reprovar em si mesma. Nada lhes posso perdoar, nada têm para ser perdoado. É de cortar o coração, diz Deus. É doloroso, pois nada disto é verdade. Mas sobretudo, diz Deus, ah! Sobretudo gosto dos garotos por causa do olhar que eles têm. É no olhar que leio a idade deles. No meu céu só haverá olhares de cinco anos, pois não conheço nada de mais belo que um olhar puro de garoto. Nada disto espanta, diz Deus, habito neles e sou Eu que me debruço à janela da alma deles. Quando vós estais no caminho de um olhar puro, sou Eu, que vos sorrio através da matéria. Mas, ao contrário, diz Deus, não conheço nada de mais triste que dois olhos apagados numa cara de garoto. Abertas estão as janelas mas a casa está vazia. Restam dois buracos negros e sombrios, mas já não há claridade, dois olhos, mas já não há olhar. E fico triste à porta, e sinto frio, e espero, e bato. Que vontade de entrar… E o outro está sozinho: o garoto. Engorda, iça rijo e seco, envelhece. Coitado do velho! Diz Deus. Aleluia! Aleluia! Diz Deus, abram, velhinhos! É o vosso Deus, é o Eterno ressuscitado que vem ressuscitar o garoto que há em vós! Vamos, depressa, chegou a hora, estou pronto a refazer-vos um belo rosto de garoto, um lindo olhar de garoto… Pois gosto dos garotos, diz Deus, e quero ver toda a gente parecer-se com eles."
Só posso rezarPAI, se demonstrar esse relacionamento com Deus no meu dia-a-dia;
Só posso rezarNOSSO, se a minha fé tem espaço para os outros e para as suas necessidades;
Só posso rezarQUE ESTAIS NOS CÉUS, se não estou apanhado pelas coisas do mundo;
Só posso rezarSANTIFICADO SEJA O VOSSO NOME, se me esforço com a ajuda de Deus, por ser santo;
Só posso rezarVENHA A NÓS O VOSSO REINO, se estou disposto a aceitar a Palavra de Deus como regra de vida;
Só posso rezarSEJA FEITA A VOSSA VONTADE, se procuro pautar a minha vida pelos seus mandamentos;
Só posso rezarASSIM NA TERRA COMO NO CÉU, se verdadeiramenteentregar-me ao serviço de Deus, aqui e agora;
Só posso rezarO PÃO NOSSO DE CADA DIA NOS DAi HOJE,se estou preparado para partilhar o que tenho com os que estão em necessidades;
Só posso rezar PERDOAI-NOS AS NOSSAS OFENSAS ASSIM COMO NÓS PERDOAMOS A QUEM NOS TEM OFENDIDO, se estou na disposição de eliminar todo o rancor que guardo no coração para com os outros;
Só posso rezarNÃO NOS DEIXEIS CAIR EM TENTAÇÃO, se estou alerta para não me meter nas armadilhas.
Só posso rezar MAS LIVRAI-NOS DO MAL, se estou preparado para combater o mal na minha vida e com a minha oração;
Sóposso rezarAMÉNse honestamente digo, «custe o que custar, esta é a minha forma de rezar».