Crónicas
de
Frei Bento
Domingues
In Público
A COMISSÃO NACIONAL DE SOCORRO AOS PRESOS POLÍTICOS
Frei Bento Domingues, O.P.
1.A produção sobre a história de Portugal do século XX já é importante. No entanto, que eu saiba, ainda não existe uma obra que abranja a história dos presos políticos em Portugal e nas ex-Colónias, durante o regime de Salazar e Marcello Caetano. Em 2007, foi publicado, na Assírio & Alvim, com grande dignidade gráfica, um ensaio jornalístico de Rui Daniel Galiza e João Pina. O seu título, Por Teu Livre Pensamento, é o primeiro verso do Fado Abandono da autoria de David Mourão-Ferreira – com música de Alain Oulman – cantado por Amália Rodrigues. Devido à sua letra, ficou justamente conhecido por Fado de Peniche.
Este ensaio recolheu, com apurado critério, Histórias de 25 Ex-Presos Políticos Portugueses. Na sua apresentação, Jaime Gama – também ex-preso político – nota que “das personalidades abrangidas, diversos foram os compromissos, as origens e os trajectos humanos, profissionais e políticos, mas dolorosamente comum foi a experiência da prisão arbitrária, por motivos ideológicos, a tortura com imensa violência, a humilhação do regime carcerário, a solidão, o prolongado sofrimento. O Tarrafal, o Aljube, Caxias, Peniche e Angra são os espaços circunscritos mais em evidência neste roteiro de heroísmos”.
2. Desde os finais do ano passado, mais precisamente, desde o dia 29 de Dezembro de 2009, a Comissão Promotora do 40º Aniversário da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos (CNSPP) tem promovido algumas iniciativas para lembrar uma história exemplar de resistência à ditadura de Salazar-Marcello Caetano: “Talvez pela primeira vez na história da Oposição – como lembrou Nuno Teotónio Pereira – esta comissão era suprapartidária, constituída por muitos elementos independentes de partidos políticos e por outros ligados às diferentes formações partidárias que constituíam a oposição ao regime. É assim que, além daqueles elementos independentes, entre os quais nove padres católicos e um pastor evangélico, faziam parte da Comissão pessoas ligadas ao PCP, ao futuro Partido Socialista e às várias correntes marxistas-leninistas que então despertavam para a acção”.
Há quem pergunte como foi possível constituir uma comissão tão unida a partir de tantas divergências, de percursos humanos, políticos e religiosos tão diversos? Como nota, ainda, o grande obreiro desta iniciativa, o citado Nuno Teotónio Pereira – a quem sigo nesta crónica – para a superação das dificuldades de entendimento, muito contribuiu o empenhamento de pessoas como Maria Eugénia Varela Gomes, Cecília Areosa Feio e Maria Natália Teotónio Pereira, secundadas pelos advogados José Augusto Rocha, Levi Baptista, Manuel João da Palma Carlos e Mário Brochado Coelho. Não sendo uma tarefa fácil, foi realizada com uma tal lealdade e desprendimento que cumpriu, exemplarmente, os seus objectivos.
A frágil base legal para a criação e funcionamento da CNSPP foi encontrada no artº 199º do Código Civil: "as Comissões [Especiais] constituídas para realizar qualquer plano de socorro ou beneficência, ou promover a execução de obras públicas, monumentos, festivais, exposições, festejos e actos semelhantes, se não o pedirem ou não o obtiverem, ficam sujeitas (...) às disposições subsequentes". Estas disposições responsabilizavam os promotores "pela conservação de fundos recolhidos e pela sua afectação ao fim anunciado", o que a CNSPP cumpriu escrupulosamente.
3. Ao longo de mais de quatro anos de actividade, a Comissão publicou 23 circulares informativas, dando notícias das prisões, das práticas de tortura, dos julgamentos efectuados, das penas aplicadas, das condições prisionais que vigoravam nas diferentes cadeias, das acções de solidariedade, das reclamações feitas junto das autoridades, assim como das suas próprias actividades. Nestas, incluía-se o apoio financeiro às famílias de presos políticos, a designação de advogados de defesa e outras iniciativas, como foi a realização de colónias de férias para filhos de presos políticos em 1972 e 1973.
As denúncias e protestos levados a efeito pela CNSPP incluíam também as perseguições a patriotas das colónias e, por isso, abrangiam as condições existentes no Tarrafal em Cabo Verde, no presídio de S. Nicolau em Angola, nos campos de concentração da Machava e na Ilha do Ibo em Moçambique.
As circulares também davam conta de algumas diligências de Francisco Sá Carneiro, Miller Guerra e outros deputados da chamada “ala liberal” para alterar a legislação referente aos presos políticos e ao seu julgamento. É de recordar, também, que um grupo destes deputados chegou a visitar a cadeia do Forte de Peniche para se inteirar das condições em que viviam os presos. Não logrou, porém, visitar o Forte de Caxias onde se exerciam as torturas sobre os detidos durante a instrução dos processos.
Espera-se que esta comemoração encoraje alguns investigadores a fazer a história dos presos políticos durante o regime de Salazar-Marcello Caetano. É indispensável, entretanto, fazer uma nova edição dos Documentos que testemunham o imenso trabalho da CNSPP que teria sido impossível se não fosse a colaboração de muitos anónimos que não constam na lista dos 48 signatários da carta enviada a Marcello Caetano a 31 de Dezembro de 1969.
CONTRA A VELHICE E A MORTE
Frei Bento Domingues, O.P.
1.Para além do meramente factual, talvez nunca seja possível dizer algo de indiscutível, de aceite por todos, acerca da morte e da velhice.
Li, na Babelia, duas notícias bastante desenvolvidas sobre duas obras literárias que me impressionaram pela sua aparente banalidade. A primeira referia-se ao Libro de los muertos do grande escritor Elias Canetti, judeu sefardita (1905-1994). É constituído por cadernos de apontamentos que testemunham a sua permanente “declaração de guerra à morte”. Para ele, mais repugnante do que a morte, é a submissão à morte: “O objecto sério e concreto, a meta declarada e explícita da minha vida é conseguir a imortalidade para todos os homens. Em tempos, quis dar este objectivo ao personagem central de um romance que a si mesmo se chamava o inimigo da morte”. Do seu projecto de matar a morte ficaram fragmentos e aforismos de luta, agora publicados.
Dizer, como Fernando Savater, que se trata de um protesto contra o irremediável, não é sinal de grande argúcia.
A segunda é sobre um romance, El don de la vida, acerca da velhice e da morte, de Fernando Vallejo, escritor colombiano. Retardou-o quanto pôde, mas apressou-se, agora, a escrevê-lo com 67 anos. Gostaria de esperar pelos 78 ou 80 anos para o elaborar a partir da sua própria experiência. Teme, porém, que, nessa idade, já não lhe apeteça, já não tenha gosto nenhum em falar da velhice.
Dir-se-á que sobre esta idade há atitudes prosaicas mais eficazes do que as obras literárias ou filosóficas. Segundo consta, a medicina anti-envelhecimento, focada na prevenção e detecção precoce de uma patologia, está apoiada em cinco pilares: nutrição, medicina desportiva, estética, optimização hormonal e genética e biologia molecular.
Como ainda não se consegue evitar o envelhecimento, aconselha-se a envelhecer com qualidade. Esta dependeria de sete factores: prática regular de exercício físico, uma boa alimentação, não fumar, não beber bebidas alcoólicas, manter um peso regular, dormir sete a oito horas e estimular o cérebro.
As consequências da revolução biotecnológica e dos avanços da neurofarmacologia ainda estão cheios de incógnitas que a Bioética tem de seguir com cuidado, pois os cenários possíveis não são todos igualmente desejáveis. Não se esqueça a sentença de Paracelso: “não são os olhos que fazem o homem ver; é o ser humano que faz com que os olhos vejam”.
2. Por enquanto, todos esses avanços, na direcção de uma vida longa e feliz, ainda não conseguem “matar a morte” como desejava Elias Canetti. Como preencher, em nós, o grande vazio deixado pela morte daqueles que amamos? A morte tornou-se, no entanto, nas sociedades modernas, um tabu, um desejo de a negar ou, pelo menos, de a esconder. No entanto, as obras acerca da arte de bem morrer e de responder às perguntas sobre o Além estão sempre a aumentar. Nem sequer faltam enciclopédias acerca de todos os saberes e crenças sobre a morte e a imortalidade. As várias religiões encenaram, na sua linguagem simbólica e nos seus ritos, formas de reanimar o grande vazio deixado pela morte.
Desde a Antiguidade, segundo os diferentes povos e culturas, projectaram-se para depois da morte os cenários geográficos do que havia de melhor, de pior e também de medíocre neste mundo. Dir-se-á que essa imaginária duplicação do mundo só prova que o desejo de ser humano para sempre é incurável, mas o desejo não é suficiente para fundar uma realidade. O único caminho aconselhável seria o da reconciliação com os nossos limites. O que não tem remédio, remediado está. É, porém, aqui, que tudo se complica. Enquanto certas formas de sabedoria se empenham em erradicar o desejo até ao vazio total, para atingir a verdadeira iluminação, passando quase sempre por diversas reencarnações, há outros caminhos que, longe de trabalharem pela aniquilação dos desejos, os intensificam, exigindo, no entanto, a sua conversão, um nascer de novo.
3. No cristianismo juntaram-se, no seu nascimento e ao longo dos séculos, várias influências. Na Quarta Feira de Cinzas, nas palavras do seu antigo ritual, há uma antropologia pouco entusiasmante que roça o niilismo: lembra-te que és pó e em pó te hás-de tornar.
Não é, porém, nessa declaração, que se pode encontrar a originalidade da revelação cristã. Esta é apresentada por S. Lucas. Jesus enviou em missão os discípulos que regressaram entusiasmados com o êxito do seu trabalho. Jesus confirmou que tudo aquilo tinha sido espantoso, mas não quis apoiar uma Igreja do sucesso: Não vos alegreis pelo facto de nada deste ou de outro mundo ter resistido à vossa palavra; alegrai-vos, sobretudo, porque os vossos nomes estão escritos nos Céus. O mais interessante é que o próprio Jesus se comoveu com o que disse: muitos profetas e reis quiseram ver o que vedes e não viram, ouvir o que ouvis e não o ouviram (Cf. Lc 10, 17-22). Afinal, que disse Jesus de tão inaudito? Traduzindo: alegrai-vos porque a vossa vida está para sempre inscrita no coração de Deus e nada nem ninguém vos poderá arrancar desse amor. Sois pessoas amadas para sempre. Não há morte que possa vencer este amor.
Frei Bento Domingues, O.P.
1.A produção sobre a história de Portugal do século XX já é importante. No entanto, que eu saiba, ainda não existe uma obra que abranja a história dos presos políticos em Portugal e nas ex-Colónias, durante o regime de Salazar e Marcello Caetano. Em 2007, foi publicado, na Assírio & Alvim, com grande dignidade gráfica, um ensaio jornalístico de Rui Daniel Galiza e João Pina. O seu título, Por Teu Livre Pensamento, é o primeiro verso do Fado Abandono da autoria de David Mourão-Ferreira – com música de Alain Oulman – cantado por Amália Rodrigues. Devido à sua letra, ficou justamente conhecido por Fado de Peniche.
Este ensaio recolheu, com apurado critério, Histórias de 25 Ex-Presos Políticos Portugueses. Na sua apresentação, Jaime Gama – também ex-preso político – nota que “das personalidades abrangidas, diversos foram os compromissos, as origens e os trajectos humanos, profissionais e políticos, mas dolorosamente comum foi a experiência da prisão arbitrária, por motivos ideológicos, a tortura com imensa violência, a humilhação do regime carcerário, a solidão, o prolongado sofrimento. O Tarrafal, o Aljube, Caxias, Peniche e Angra são os espaços circunscritos mais em evidência neste roteiro de heroísmos”.
2. Desde os finais do ano passado, mais precisamente, desde o dia 29 de Dezembro de 2009, a Comissão Promotora do 40º Aniversário da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos (CNSPP) tem promovido algumas iniciativas para lembrar uma história exemplar de resistência à ditadura de Salazar-Marcello Caetano: “Talvez pela primeira vez na história da Oposição – como lembrou Nuno Teotónio Pereira – esta comissão era suprapartidária, constituída por muitos elementos independentes de partidos políticos e por outros ligados às diferentes formações partidárias que constituíam a oposição ao regime. É assim que, além daqueles elementos independentes, entre os quais nove padres católicos e um pastor evangélico, faziam parte da Comissão pessoas ligadas ao PCP, ao futuro Partido Socialista e às várias correntes marxistas-leninistas que então despertavam para a acção”.
Há quem pergunte como foi possível constituir uma comissão tão unida a partir de tantas divergências, de percursos humanos, políticos e religiosos tão diversos? Como nota, ainda, o grande obreiro desta iniciativa, o citado Nuno Teotónio Pereira – a quem sigo nesta crónica – para a superação das dificuldades de entendimento, muito contribuiu o empenhamento de pessoas como Maria Eugénia Varela Gomes, Cecília Areosa Feio e Maria Natália Teotónio Pereira, secundadas pelos advogados José Augusto Rocha, Levi Baptista, Manuel João da Palma Carlos e Mário Brochado Coelho. Não sendo uma tarefa fácil, foi realizada com uma tal lealdade e desprendimento que cumpriu, exemplarmente, os seus objectivos.
A frágil base legal para a criação e funcionamento da CNSPP foi encontrada no artº 199º do Código Civil: "as Comissões [Especiais] constituídas para realizar qualquer plano de socorro ou beneficência, ou promover a execução de obras públicas, monumentos, festivais, exposições, festejos e actos semelhantes, se não o pedirem ou não o obtiverem, ficam sujeitas (...) às disposições subsequentes". Estas disposições responsabilizavam os promotores "pela conservação de fundos recolhidos e pela sua afectação ao fim anunciado", o que a CNSPP cumpriu escrupulosamente.
3. Ao longo de mais de quatro anos de actividade, a Comissão publicou 23 circulares informativas, dando notícias das prisões, das práticas de tortura, dos julgamentos efectuados, das penas aplicadas, das condições prisionais que vigoravam nas diferentes cadeias, das acções de solidariedade, das reclamações feitas junto das autoridades, assim como das suas próprias actividades. Nestas, incluía-se o apoio financeiro às famílias de presos políticos, a designação de advogados de defesa e outras iniciativas, como foi a realização de colónias de férias para filhos de presos políticos em 1972 e 1973.
As denúncias e protestos levados a efeito pela CNSPP incluíam também as perseguições a patriotas das colónias e, por isso, abrangiam as condições existentes no Tarrafal em Cabo Verde, no presídio de S. Nicolau em Angola, nos campos de concentração da Machava e na Ilha do Ibo em Moçambique.
As circulares também davam conta de algumas diligências de Francisco Sá Carneiro, Miller Guerra e outros deputados da chamada “ala liberal” para alterar a legislação referente aos presos políticos e ao seu julgamento. É de recordar, também, que um grupo destes deputados chegou a visitar a cadeia do Forte de Peniche para se inteirar das condições em que viviam os presos. Não logrou, porém, visitar o Forte de Caxias onde se exerciam as torturas sobre os detidos durante a instrução dos processos.
Espera-se que esta comemoração encoraje alguns investigadores a fazer a história dos presos políticos durante o regime de Salazar-Marcello Caetano. É indispensável, entretanto, fazer uma nova edição dos Documentos que testemunham o imenso trabalho da CNSPP que teria sido impossível se não fosse a colaboração de muitos anónimos que não constam na lista dos 48 signatários da carta enviada a Marcello Caetano a 31 de Dezembro de 1969.
CONTRA A VELHICE E A MORTE
Frei Bento Domingues, O.P.
1.Para além do meramente factual, talvez nunca seja possível dizer algo de indiscutível, de aceite por todos, acerca da morte e da velhice.
Li, na Babelia, duas notícias bastante desenvolvidas sobre duas obras literárias que me impressionaram pela sua aparente banalidade. A primeira referia-se ao Libro de los muertos do grande escritor Elias Canetti, judeu sefardita (1905-1994). É constituído por cadernos de apontamentos que testemunham a sua permanente “declaração de guerra à morte”. Para ele, mais repugnante do que a morte, é a submissão à morte: “O objecto sério e concreto, a meta declarada e explícita da minha vida é conseguir a imortalidade para todos os homens. Em tempos, quis dar este objectivo ao personagem central de um romance que a si mesmo se chamava o inimigo da morte”. Do seu projecto de matar a morte ficaram fragmentos e aforismos de luta, agora publicados.
Dizer, como Fernando Savater, que se trata de um protesto contra o irremediável, não é sinal de grande argúcia.
A segunda é sobre um romance, El don de la vida, acerca da velhice e da morte, de Fernando Vallejo, escritor colombiano. Retardou-o quanto pôde, mas apressou-se, agora, a escrevê-lo com 67 anos. Gostaria de esperar pelos 78 ou 80 anos para o elaborar a partir da sua própria experiência. Teme, porém, que, nessa idade, já não lhe apeteça, já não tenha gosto nenhum em falar da velhice.
Dir-se-á que sobre esta idade há atitudes prosaicas mais eficazes do que as obras literárias ou filosóficas. Segundo consta, a medicina anti-envelhecimento, focada na prevenção e detecção precoce de uma patologia, está apoiada em cinco pilares: nutrição, medicina desportiva, estética, optimização hormonal e genética e biologia molecular.
Como ainda não se consegue evitar o envelhecimento, aconselha-se a envelhecer com qualidade. Esta dependeria de sete factores: prática regular de exercício físico, uma boa alimentação, não fumar, não beber bebidas alcoólicas, manter um peso regular, dormir sete a oito horas e estimular o cérebro.
As consequências da revolução biotecnológica e dos avanços da neurofarmacologia ainda estão cheios de incógnitas que a Bioética tem de seguir com cuidado, pois os cenários possíveis não são todos igualmente desejáveis. Não se esqueça a sentença de Paracelso: “não são os olhos que fazem o homem ver; é o ser humano que faz com que os olhos vejam”.
2. Por enquanto, todos esses avanços, na direcção de uma vida longa e feliz, ainda não conseguem “matar a morte” como desejava Elias Canetti. Como preencher, em nós, o grande vazio deixado pela morte daqueles que amamos? A morte tornou-se, no entanto, nas sociedades modernas, um tabu, um desejo de a negar ou, pelo menos, de a esconder. No entanto, as obras acerca da arte de bem morrer e de responder às perguntas sobre o Além estão sempre a aumentar. Nem sequer faltam enciclopédias acerca de todos os saberes e crenças sobre a morte e a imortalidade. As várias religiões encenaram, na sua linguagem simbólica e nos seus ritos, formas de reanimar o grande vazio deixado pela morte.
Desde a Antiguidade, segundo os diferentes povos e culturas, projectaram-se para depois da morte os cenários geográficos do que havia de melhor, de pior e também de medíocre neste mundo. Dir-se-á que essa imaginária duplicação do mundo só prova que o desejo de ser humano para sempre é incurável, mas o desejo não é suficiente para fundar uma realidade. O único caminho aconselhável seria o da reconciliação com os nossos limites. O que não tem remédio, remediado está. É, porém, aqui, que tudo se complica. Enquanto certas formas de sabedoria se empenham em erradicar o desejo até ao vazio total, para atingir a verdadeira iluminação, passando quase sempre por diversas reencarnações, há outros caminhos que, longe de trabalharem pela aniquilação dos desejos, os intensificam, exigindo, no entanto, a sua conversão, um nascer de novo.
3. No cristianismo juntaram-se, no seu nascimento e ao longo dos séculos, várias influências. Na Quarta Feira de Cinzas, nas palavras do seu antigo ritual, há uma antropologia pouco entusiasmante que roça o niilismo: lembra-te que és pó e em pó te hás-de tornar.
Não é, porém, nessa declaração, que se pode encontrar a originalidade da revelação cristã. Esta é apresentada por S. Lucas. Jesus enviou em missão os discípulos que regressaram entusiasmados com o êxito do seu trabalho. Jesus confirmou que tudo aquilo tinha sido espantoso, mas não quis apoiar uma Igreja do sucesso: Não vos alegreis pelo facto de nada deste ou de outro mundo ter resistido à vossa palavra; alegrai-vos, sobretudo, porque os vossos nomes estão escritos nos Céus. O mais interessante é que o próprio Jesus se comoveu com o que disse: muitos profetas e reis quiseram ver o que vedes e não viram, ouvir o que ouvis e não o ouviram (Cf. Lc 10, 17-22). Afinal, que disse Jesus de tão inaudito? Traduzindo: alegrai-vos porque a vossa vida está para sempre inscrita no coração de Deus e nada nem ninguém vos poderá arrancar desse amor. Sois pessoas amadas para sempre. Não há morte que possa vencer este amor.
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